O Feliz Renascimento do Aleitamento Materno: além do fator nutricional e da proteção constitui-se também numa real declaração de amor

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Introdução

A OMS recomenda a prática do aleitamento natural exclusivo durante os 6 primeiros meses de vida, e a partir desta idade deve-se começar, de forma gradual, a introdução dos alimentos sólidos. A suplementação do aleitamento natural é recomendada até pelo menos os 2 anos de idade desde que este seja um desejo recíproco entre mãe e filho (Figuras 1, 2, 3 e 4).

O aleitamento natural continua a oferecer efeitos benéficos à saúde da criança até mesmo durante a fase pré-escolar, tais como: baixo risco da Síndrome da Morte Súbita, inteligência mais refinada, menores riscos de contrair infecções das vias aéreas superiores, gripes, menores riscos de contrair determinados tipos de câncer, em especial a leucemia na infância, baixo risco de instalação de diabete, menores riscos de asma e eczema, diminuição de problemas dentários, risco menor de desenvolver obesidade em idades mais avançadas, e riscos menores do surgimento de afecções psicológicas.

O aleitamento natural também fornece benefícios à saúde da mãe, posto que auxilia no retorno do útero ao seu tamanho natural original, antes de haver engravidado, assim como também contribui para que a mulher retorne ao seu peso anterior à gravidez. O aleitamento natural também reduz o risco de contrair câncer de mama em idade mais avançada.

Sob a influência dos hormônios pro-lactina e oxitocina as mulheres passam a produzir leite após o nascimento da criança para poder alimentá-lo. O leite inicialmente produzido chama-se colostro, o qual é muito rico em imunoglobulina A secretora a qual recobre o trato digestivo protegendo-o das agressões do meio exterior. Esta proteção ajuda o recém-nascido até que seu próprio sistema imunológico esteja funcionando plenamente, e, ao mesmo tempo, possui um efeito laxativo ao contribuir para que o mecônio seja eliminado e, desta forma, também prevenir o acúmulo de bilirrubina, que é um fator contribuinte para o surgimento da icterícia.

A quantidade de leite materno produzida depende da freqüência que a mãe oferece o seio, ou seja, quanto mais freqüentemente o recém-nascido mamar, maior será a produção do leite. É extremamente recomendável que o recém-nascido seja alimentado sob o regime da livre demanda, isto é, quando estiver com fome, ao invés de se estabelecer um esquema rígido de horário de alimentação.

A composição exata do leite materno varia de dia para dia e mesmo durante o dia, na dependência da dieta materna e do próprio ambiente e inclusive em pleno ato de mamar. Por exemplo, o leite liberado no início da mamada é mais “aguado”, com baixo teor de gordura e maior concentração de carboidrato em relação ao leite liberado mais tardiamente, à medida que a lactação vai progredindo, o qual é mais cremoso com maior teor de gordura (Figura 5).

Figura 5. Duas amostras de leite humano obtidas em diferentes momentos da lactação: à esquerda leite inicial "aguado" com baixo teor de gordura e à direita leite tardio cremoso com alto teor de gordura.

Figura 5. Duas amostras de leite humano obtidas em diferentes momentos da lactação: à esquerda leite inicial “aguado” com baixo teor de gordura e à direita leite tardio cremoso com alto teor de gordura.

Na verdade a mama nunca pode ser verdadeiramente esvaziada, porque a produção do leite se constitui em um processo biológico contínuo.

O leite humano além de fornecer apropriadas concentrações de proteínas, gorduras e carboidratos, também oferece vitaminas, sais minerais, enzimas digestivos e hormônios, enfim todos os ingredientes que o lactente necessita para crescer dentro do seu potencial genético. O leite humano também contém anticorpos e linfócitos do organismo materno o que auxilia na prevenção de infecções. A função imunológica do leite humano é individualizada, posto que a mãe através do toque físico ao cuidar do lactente entra também em contato com os microorganismos que colonizam o lactente e, conseqüentemente, estes últimos induzem o organismo materno a produzir anticorpos específicos contra os próprios microorganismos, bem como células imunologicamente competentes.

Histórico do Aleitamento Natural: apogeu e declínio

A lactação é universalmente reconhecida como uma das características exclusivas dos mamíferos, ocorre há milhões de anos, e, na natureza, desde sempre, as fêmeas destas espécies do mundo animal executam esta prodigiosa tarefa de preservar a vida de suas crias sem necessitar de se espelhar em qualquer modelo de ensinamento prévio. Trata-se, portanto, de um ato instintivo de preservação da espécie e que ao mesmo tempo cria, pelo menos no ser humano, um elo indissolúvel de recíproco afeto. Desde o surgimento do Homo erectus a mulher criava sua prole exclusivamente com seu próprio produto da glândula mamária, o leite, desde os períodos mais vulneráveis da existência dos seus conceptos até que estes viessem a ter plena independência na busca dos alimentos alguns anos mais adiante.

Até o início do século XIX a amamentação era uma regra praticamente universal em vigência; entretanto, em decorrência das alterações do comportamento biopsicossocial do ser humano iniciadas no fim do século retrasado acompanhando o começo da era da modernização oriunda da industrialização, particularmente no mundo ocidental, passou-se concomitantemente a ser observada uma progressiva e disseminada mudança no hábito da prática do aleitamento natural, caracterizada por um nítido declínio da mesma. Inicialmente este fenômeno teve lugar nas classes mais abastadas dando origem ao surgimento das amas-de-leite, que em geral eram as serventes das famílias (na verdade praticamente escravas), função esta que posteriormente passou a ser ocupada pelas nutrizes remuneradas. Para exemplificar esta afirmativa, há documentos cientificamente comprovados os quais atestam que em Paris, França, em 1780, dentre as 21.000 crianças que aí nasceram apenas uma pequena parcela foi amamentada por suas próprias mães (Organización Mundial de la Salud 1981, 245 pg); a grande maioria delas foi criada por amas-de-leite mercenárias. Este fenômeno de abrangência praticamente geral no mundo ocidental pode ser comprovado por inúmeras pesquisas realizadas em diferentes países. Assim é que na Inglaterra, em 1947, 41% dos lactentes acompanhados em New Castle Upon Time recebiam alimentação mista com um mês de vida, passando para 67% aos três meses de idade. Na mesma época, em Southport, 76% dos lactentes com dois meses de vida já estavam recebendo aleitamento misto; em Londres, em 1969, constatou-se que apenas 33% das mães amamentavam seus filhos exclusivamente ao seio durante o primeiro mês. Na Suécia, o aleitamento natural de forma exclusiva até o segundo mês de vida sofreu vertiginosa queda de 85% em 1944, para 35% em 1970 (UNICEF 1980).

No Brasil, este mesmo fenômeno começou a ocorrer algum tempo depois, mas já em 1873, Correia de Azevedo reclamava pela adoção de medidas que normatizassem a prática do aleitamento mercenário, para logo a seguir, o Barão de Lavradio, em 1875, passar a reivindicar dos órgãos competentes a regulamentação desse serviço considerado à época de doméstico. Como resultado deste pleito, em 1876, foi criado por Moncorvo, o primeiro projeto de regulamentação da atividade desse tipo de nutrizes. Em 1901, foi fundado o Instituto de Proteção e Assistência à Infância, no Rio de Janeiro, o qual, entre outros objetivos, tinha a finalidade de oferecer assistência médica e controlar o estado de saúde das amas-de-leite. Entretanto, apesar dos esforços invidados por estes próceres, uma modalidade de lei que viesse a regulamentar a atividade das amas-de-leite jamais foi promulgada e, portanto, nunca chegou a ser implantada (Ama de Leite, Clin. Pediat. 3;91-4,1985). Em 1960, a prática do aleitamento natural ainda era universal, e o tempo de duração variava de 4 a 12 meses. Na década de 1970, porém, este quadro sofreu uma grande transformação, e o declínio da prática do aleitamento natural tornou-se evidente e alarmante. Sigulem e Tudisco (Arch. Latino-Amer. Nutr. 3;401-16,1980), em estudo realizado na cidade de São Paulo constataram que a mediana da duração do aleitamento natural era inferior a 30 dias. Por outro lado, Sichieri e Moura (J Pediatr. 55;323-6,1983), em 1982, observaram que das 492 crianças acompanhadas em um Posto de Saúde da periferia de São Paulo, 54,5% haviam sido desmamadas em período de tempo igual ou inferior a 30 dias, e somente 12,5% dos lactentes haviam recebido aleitamento natural por tempo prolongado. Lima, Wehba e Fagundes-Neto (Rev. Paulista Pediatr. 8;55-8,1990) demonstraram que, na década de 1980, também nas classes sócio-econômicas abastadas a prática do aleitamento natural exclusivo encontrava-se em desuso, posto que a idade média do desmame ocorreu aos 10 dias de vida do lactente e a principal causa atribuída ao fracasso da amamentação, em 65,5% dos casos foi a hipogalactia.

No entanto, em virtude dos alarmantes problemas de saúde surgidos em decorrência do abandono da prática do aleitamento natural, que redundou no aumento significativo da mortalidade infantil, em especial nas parcelas sócio-econômicas mais vulneráveis da sociedade, o que foi cientificamente comprovado, estes fatos chamaram a atenção dos órgãos internacionais responsáveis por cuidar da qualidade de vida das populações, e passou-se, então, a implementar políticas de saúde pública para se tentar reverter este dramático quadro a partir do início da década de 1980. No nosso próximo encontro passarei a detalhar mais extensamente as medidas adotadas que resultaram no renascimento da prática do aleitamento natural no mundo ocidental.

Composição do Leite Humano e do Leite produzido por outros Mamíferos

O leite é uma emulsão constituída aproximadamente por 20% de material sólido e 80% de água. Trata-se de uma solução coloidal de glóbulos de gordura (micela), as quais se encontram no interior de um fluido aquoso (Figura 6).

Figura 6. Representação esquemática de uma micela.

Figura 6. Representação esquemática de uma micela.

Figura 7. Representação simplificada da molécula da lactose e a consequente hidrólise dando resultado aos monossacarideos Glicose e Galactose.

Figura 7. Representação simplificada da molécula da lactose e a consequente hidrólise dando resultado aos monossacarideos Glicose e Galactose.

Cada glóbulo de gordura é circundado por uma membrana constituída por fosfolípides e proteínas; estas substâncias, denominadas emulsificantes, mantêm os glóbulos separados individualmente evitando que estes se juntem para formar grânulos sólidos de gordura e também agem como protetores dos próprios glóbulos de gordura da ação das enzimas digestivas de gorduras presentes na fração líquida do leite. As vitaminas lipossolúveis A, D, E e K encontram-se presentes no interior da porção gordurosa do leite. É importante assinalar que o leite humano contem uma enzima denominada lipase, a qual quebra a gordura transformando-a em pequenos glóbulos, os quais são mais facilmente digeridos.

As maiores estruturas químicas presentes na porção líquida do leite são formadas por micelas de caseína; estas se constituem em milhares de moléculas de proteínas ligadas entre si com o auxílio de partículas em escala nanométrica de fosfato de cálcio. Estas micelas desempenham importantes papeis, mas a mais notória é impedir que as mesmas formem agregados sólidos. A camada mais externa das micelas é constituída por um tipo de proteína denominada kappa-caseina, a qual se encontra na porção exterior do corpo da micela no interior do fluido que a circunda. Estas moléculas de kappa-caseina possuem carga elétrica negativa e, portanto, se auto-repelem, fenômeno que mantém as micelas individualmente separadas, evitando assim que em condições normais, sejam formados grumos sólidos, preservando-as em uma suspensão coloidal estável no fluido em que estão imersas.

O leite contem ainda uma grande série de outras proteínas além da caseína, as quais são mais solúveis em água e não formam grandes estruturas químicas. Como estas proteínas permanecem suspensas no soro do leite quando a caseína forma coágulos, elas passaram a ser denominadas em conjunto de proteínas do soro.

Tanto os glóbulos de gordura quanto as pequenas micelas de caseína, as quais têm tamanho suficiente para defletir a luz, contribuem para a coloração branca do leite.

O carboidrato do leite, a lactose, confere-lhe um sabor levemente adocicado. Alactose é um dissacarídeo constituído pelos seguintes monossacarídeos: glicose e galactose (Figura 7). Na natureza, a lactose é praticamente encontrada apenas no leite, porém está também presente em baixíssimas concentrações em algumas plantas.

O leite humano contem 1,1g% de proteínas, 4,2g% de gorduras, 7,0g% de carboidratos e 0,2g% de minerais oferecendo 72 kcal/100ml (Tabela 1).O principal carboidrato do leite humano é a lactose, porém vários outros oligossacarídeos semelhantes à lactose foram identificados em pequenas concentrações. A fração de gordura contem triglicerídeos específicos, tais como ácidos oléico e palmítico, assim como significativas quantidades de lipídeos com ligações trans, os quais são benéficos à saúde. Dentre eles destacam-se os ácidos vacênico e linoléico, os quais correspondem a cerca de 6% da gordura totalAs principais proteínas são a beta-caseina, alfa-lactoalbumina, lactoferrina, IgA secretora, lisosimas e a soro-albumina.Compostos nitrogenados não protéicos que incluem uréia, ácido úrico, creatina, creatinina, amino-ácidos e nucleotídeos correspondem a aproximadamente 25% do conteúdo de nitrogênio. Foi demonstrado também que o leite humano fornece uma substância que é um neuro-transmissor (endocannabinoide) com ação tranqüilizante. O leite humano também é provido de todas as vitaminas necessárias para o crescimento e o desenvolvimento adequados do recém-nascido e do lactente até pelo menos os primeiros 6 meses de vida, a saber: Vitaminas A, D, C, E, B1, B2, B6, B12, ácido pantotênico, biotina, niacina e ácido fólico, além de quantidade apropriada de Ferro.

Tabela 1Tabela 2

A composição do leite de alguns outros mamíferos, que são frequentemente utilizados na nossa dieta seja in natura ou sob a forma de sub-produtos como por exemplo queijos, difere substancialmente do leite humano, e, por esta razão estes leites são completamente inapropriados para a alimentação de recém-nascidos e lactentes até o segundo ano de vida, pelo menos.

O Sucesso da Implantação de um Programa de Incentivo à Prática do aleitamento Natural Exclusivo por Tempo Prolongado em uma Comunidade de Baixa Renda

Diante do reconhecimento indiscutível do real valor da amamentação como fator de grande benefício à saúde materno-infantil, a OMS e o UNICEF convocaram, em 1974, a 27ª Assembléia Mundial Sobre Alimentação Infantil, em um momento que se constatava a ocorrência de um nítido e perigoso declínio da prática do aleitamento natural em inúmeras regiões do mundo. Nesta ocasião, diante do preocupante quadro de agravo do estado nutricional de parcelas altamente significativas de crianças de tenra idade afetadas pelo binômio diarréia-desnutrição, em inúmeros países do globo terrestre, mais particularmente naquelas camadas sócio-econômicas desfavorecidas, foram propostas medidas para resgatar a prática do aleitamento natural.

Após extensa e maciça promoção realizada por órgãos governamentais e grupos voluntários, passou-se a observar uma gradual, porém efetiva e exitosa tendência de retorno à prática do aleitamento natural em algumas partes do mundo. Por exemplo, na antiga Iugoslávia ocorreu uma alteração na licença maternidade, a qual foi ampliada até o sexto mês para as nutrizes que se encontravam amamentando. Na Suíça, por outro lado, passou-se a oferecer um abono suplementar às mulheres que amamentam durante 10 semanas. Na Suécia, Chile, Nigéria e Filipinas, por exemplo, as instituições governamentais passaram a desenvolver uma política nacional de promoção à prática do aleitamento natural, inclusive patrocinando uma série de eventos denominados “Dias da Amamentação”, durante os quais são organizadas atividades educativas voltadas ao incentivo do aleitamento natural.Como é sabido, no Brasil também ocorreu o mesmo fenômeno, porém, não de forma sustentável, apenas se consolidando a licença maternidade por um período de 4 meses.

No nosso país e em outros países com características semelhantes de estrutura de desenvolvimento sócio-econômico, um contingente significativo da população de baixa renda é empurrado para uma vida marginal e passa a viver nas favelas, as quais geralmente estão localizadas nas periferias dos centros urbanos, convivendo assim com um meio ambiente com altas taxas de contaminação devido à ausência de saneamento básico. Desta forma, estes indivíduos, por habitar em condições altamente desfavoráveis e insalubres, tornam-se alvo altamente vulneráveis de uma infinidade de agressões impostas pelo meio ambiente totalmente degradado. As crianças, em particular, que aí são criadas representam a parcela da população que sofre os maiores riscos de contrair doenças que contribuem decididamente para o aumento das taxas de morbidade e mortalidade infantis.

Esta assertiva foi por nós confirmada, de forma inequívoca, durante o período em que um grupo multiprofissional da saúde constituído por estudantes de pós-graduação da Disciplina de Gastroenterologia Pediátrica e por mim coordenado, a partir do início da década de 1980, passou a oferecer assistência na favela Cidade Leonor, localizada à época às margens do córrego da Água Espraiada na região próxima ao aeroporto de Congonhas (Figuras 8, 9, 10 e 11).

A favela Cidade Leonor existe há cerca de 60 anos e cresceu gradualmente estendendo-se na ocasião por aproximadamente 3 km, em um fundo de vale, acompanhando o curso do córrego da Água Espraiada aonde numerosos conglomerados de barracos foram erguidos misturando-se em alguns trechos com áreas residenciais urbanizadas (Figuras 12 e 13).

Água encanada era disponível para 88,5% dos barracos, mas nenhum deles dispunha de rede de esgoto, sendo que os dejetos eram drenados diretamente para o córrego, o qual se transformou em uma verdadeira cloaca a céu aberto (Figuras 14 e 15).

O córrego da Água Espraiada nasce na região de Diadema e após um percurso de 15 km deságua no rio Pinheiros próximo à ponte do Morumbi (há alguns anos o córrego foi canalizado e sobre ele passa a av. Roberto Marinho). Naquela época, como ação preliminar para iniciarmos nosso trabalho assistencial, realizamos o censo populacional da comunidade que passaríamos a atender e constatamos que havia 1535 crianças menores de 10 anos sendo que 324 eram menores de 2 anos. Passo seguinte foi realizar a avaliação do estado nutricional de uma amostra da população infantil. Foram avaliadas 520 crianças tendo sido constatado que 53% delas apresentavam algum grau de desnutrição, e mais ainda que dentre estes desnutrição crônica constituía-se no principal problema de agravo nutricional desta população infantil. Durante um período 28 semanas foi estimulado o comparecimento de toda a população infantil compreendida na faixa etária de 0 a 120 dias ao Posto Médico para seguimento pondero-estatural durante o primeiro ano de vida e também para registrar as intercorrências clínicas em consultas mensais de rotina. Foram recrutadas inicialmente 61 crianças e neste grupo ficou constatado que apenas 18 (29,5%) crianças estavam sendo amamentadas quando da primeira consulta, 13 (72,2%) delas eram menores de 1 mês, e a duração do aleitamento natural exclusivo aos 45 dias de vida incluía somente 49% dos lactentes, portanto mais da metade deste grupo de crianças já havia sido desmamada em idade ainda de grande vulnerabilidade para contrair doenças que levam ao ciclo vicioso diarréia-desnutrição. Portanto, as crianças desta comunidade muito precocemente deixam de receber o aleitamento natural exclusivo, o qual representa um grande papel protetor contra as agressões do meio ambiente, em especial contra infecções em geral, e mais especificamente contra as infecções bacterianas gastrointestinais.

Considerando as altas vulnerabilidades dos lactentes pertencentes às famílias que habitam estas comunidades marginais às infecções em geral, a baixa prevalência da prática do aleitamento natural nesta população e o potencial papel protetor exercido pelo aleitamento natural, elaboramos um projeto de promoção à prática do aleitamento natural por tempo prolongado tendo em vista os seguintes objetivos:

  1. Analisar comparativamente o ganho pondero-estatural entre os lactentes que receberam aleitamento natural exclusivo por tempo prolongado e aqueles que receberam aleitamento artificial;
  2. Determinar e comparar a freqüência dos processos mórbidos durante o primeiro ano de vida entre os lactentes que receberam aleitamento natural exclusivo por tempo prolongado e aqueles que receberam aleitamento artificial.

Seleção da Amostra

A amostra selecionada constituiu-se por gestantes de baixo nível sócio-econômico residentes na favela Cidade Leonor (Figuras 16, 17, 18, 19 e 20) e matriculadas no Centro Assistencial Cruz de Malta (Figuras 21, 22 e 23), as quais se encontravam no início do segundo trimestre de gestação. No transcorrer da pesquisa, estas gestantes tornaram-se nutrizes e continuaram a ser acompanhadas juntamente com seus filhos, desde o nascimento até o final do primeiro ano de vida.

Considerou-se como indicador de baixo nível sócio-econômico renda familiar inferior ou igual a 2 salários mínimos. Quanto à idade as gestantes deveriam estar compreendidas entre 16 e 35 anos e no que diz respeito à paridade deveriam apresentar passado obstétrico variando de nulíparas e não-nulíparas com até 4 paridades. Foram também selecionadas as gestantes que não apresentavam patologias obstétricas que pudessem impedir a amamentação ou ocasionar o nascimento de crianças com baixo peso.

Com relação às crianças foram incluídas aquelas que preenchessem as seguintes condições:

  1. Crianças nascidas a termo com idade gestacional entre 38 e 42 semanas;
  2. Crianças com peso de nascimento superior a 2.500 gramas e adequado para a idade gestacional;
  3. Crianças que não apresentaram intercorrências patológicas ao nascimento.

Desenho do Estudo

Quando as gestantes matriculadas no serviço de orientação pré-natal atingiam o final do primeiro trimestre de gestação eram encaminhadas ao serviço de Gastroenterologia Pediátrica e Nutrição sob a responsabilidade da Dra. Fátima Lindoso e minha orientação (tratava-se do projeto de tese de Doutorado da referida doutora a qual quando finalizada e apresentada ao programa de Pós-Graduação de Pediatria da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo, em 1993, foi aprovada com nota 10,0) para serem submetidas a uma entrevista e possível inclusão no programa (Figura 24).

Foram entrevistadas 100 gestantes, dentre elas, 70 preencheram os critérios para inclusão na pesquisa e aceitaram participar do projeto. Durante a entrevista explicavam-se, a cada potencial participante, os objetivos do trabalho, e, firmava-se verbalmente, entre entrevistada e entrevistadora, um compromisso de acompanhamento contínuo de ambas as partes até que seu futuro filho viesse a completar o primeiro ano de vida.

Após a inclusão no estudo, cada gestante foi submetida a um questionário detalhado a respeito dos seus dados pessoais. Todas as gestantes tiveram seus endereços confirmados, por meio de uma visita domiciliar realizada pela enfermeira que trabalhava junto à nossa equipe.

Plano de Apoio e Incentivo à Prática do Aleitamento Materno

Para estimular a prática do aleitamento natural foi elaborado um plano de apoio que inicialmente foi dirigido às gestantes e posteriormente às nutrizes. Este plano constituiu-se basicamente no estabelecimento de uma profunda relação pessoal entre os membros da equipe de trabalho e as participantes da pesquisa, e constava de discussões em grupo, orientação individual, demonstração prática do aleitamento, desmistificações dos inúmeros tabus existentes contra eficácia do leite materno para o bom desenvolvimento da criança etc. Os temas abordados nesse período versavam sobre as modificações ocorridas no corpo da futura mãe em decorrência da gravidez, a função da glândula mamária, o aleitamento materno e sua importância para a saúde do binômio mãe-filho, mitos e desmame, causas e conseqüências e também técnicas de amamentação.

Após o período inicial do relacionamento individual, passou-se à etapa de orientação coletiva e ao término de cada palestra eram abertas discussões entre as gestantes com o intuito de promover a troca de experiências pessoais.

Com o nascimento das crianças e mesmo durante o transcorrer do crescimento e desenvolvimento das mesmas, ampliaram-se os assuntos a serem debatidos, os quais passaram a enfocar os seguintes temas: técnicas de amamentação e como evitar o desmame, adequação do aleitamento materno às necessidades da criança, época adequada para a introdução dos alimentos do desmame e tipos de alimentos que deveriam ser empregados, programa de vacinação, alimentação durante o primeiro ano de vida etc.

Figura 20. A auxiliar de enfermagem sra. Magnólia e eu revendo as pastas de arquivos dos nossos pacientes.

Figura 20. A auxiliar de enfermagem Sra. Magnólia e eu revendo as pastas de arquivos dos nossos pacientes.

Acompanhamento das Gestantes

O acompanhamento das gestantes se deu por meio de consultas quinzenais durante toda a gestação e consistiu de 3 etapas sequenciais, a saber:

  1. Mensuração quinzenal do peso;
  2. Orientação para os cuidados primários à saúde materno-infantil;
  3. Distribuição de produtos para suplementação alimentar.

Formação do Binômio Mãe-Filho

Após o nascimento da criança foram propostas as seguintes etapas de acompanhamento do binômio mãe-filho, como se segue:

  1. Primeira consulta aproximadamente no 15º dia após o nascimento;
  2. Entrevista para inclusão do filho no estudo;
  3. Acompanhamento prospectivo quinzenal mãe-filho;
  4. Preenchimento de protocolo específico do filho com os dados pessoais pertinentes.

Seguimento Clínico e Antropométrico dos Lactentes

Para a realização do seguimento clínico dos lactentes foi elaborada uma ficha individual com os seguintes conteúdos: identificação social, questionário de seguimento longitudinal durante o primeiro ano de vida, dados antropométricos, registro dos hábitos alimentares (prática de aleitamento natural, época de introdução dos alimentos do desmame, tipos e formas), avaliação clínica na puericultura e durante as intercorrências mórbidas (Figura 25).

Resultados

Características sócio-econômicas-educacionais dos pais

Do grupo inicial das 70 gestantes elegíveis para o estudo foi possível realizar o acompanhamento até o final do primeiro ano dos seus filhos em 48 delas. As idades das mães variaram de 17 a 35 anos, com média de 29,9+/-5,7 anos, e com relação aos pais as idades variaram de 19 a 54 anos, média de 29,5+/-6,5 anos.

Quanto à paridade, 11 (22,9%) eram primíparas, 9 (18,8%) secundíparas e 28 (58,3%) apresentavam 3 ou 4 paridades. Com relação ao tipo de parto, 28 (58,3%) tiveram parto vaginal e 20 (41,7%) sofreram parto cesariana.

Com relação ao grau de instrução das mães, 4 (8,3%) eram analfabetas, 44 ((1,7%) haviam recebido educação formal durante período de tempo variável (não superior ao ensino fundamental) e 14 (29,2%) exerciam atividade profissional extra-domiciliar. Quanto aos pais, 2 (4,2%) eram analfabetos, e 46 (95,8%) haviam recebido algum grau de educação formal (apenas 4 deles haviam completado o ensino médio); todos eles exerciam algum tipo de atividade profissional.

Características clínicas dos filhos ao nascimento e tipo de alimentação recebida

Das 48 crianças acompanhadas durante o primeiro ano de vida, 22 (45,8%) eram do sexo feminino, e a média do peso ao nascimento foi de 3.145+/-352 gramas, variando de 2.580 a 4020 gramas.

O crescimento pondero-estatural das crianças que receberam aleitamento natural exclusivo até o sexto mês de vida mostrou-se perfeitamente superponível (percentil 50) a aquele determinado pelo estudo de Murahovischi e cols., em São Paulo, com crianças de nível sócio-econômico elevado recebendo aleitamento natural exclusivo (Jornal de Pediatria 63: 1-23, 1987) (Gráficos 1, 2, 3 e 4).

Gráfico 1. Crescimento em comprimento dos meninos (percentil 50)

Gráfico 1. Crescimento em comprimento dos meninos (percentil 50)

Gráfico 2. Crescimento em comprimento das meninas (percentil 50).

Gráfico 2. Crescimento em comprimento das meninas (percentil 50).

 Gráfico 3. Ganho ponderal dos meninos (percentil 50).


Gráfico 3. Ganho ponderal dos meninos (percentil 50).

Gráfico 4. Ganho ponderal das meninas (percentil 50).

Gráfico 4. Ganho ponderal das meninas (percentil 50).

Com relação ao tipo de aleitamento 32 receberam aleitamento natural a partir do nascimento e 16 receberam aleitamento artificial (Figuras 26 e 27).

O ganho ponderal dos lactentes que receberam aleitamento exclusivo por tempo prolongado foi significativamente maior nos períodos referentes aos 4, 5, 6 e 7 meses de idade, tanto para o sexo masculino quanto para o sexo feminino, quando comparado com o ganho ponderal dos lactentes em aleitamento artificial nos mesmos intervalos de idade. Após o sétimo mês de vida, porém, apesar do ganho de peso dos lactentes amamentados exclusivamente ao seio ter sido em valor absoluto superior aos dos seus pares em aleitamento artificial a diferença não se mostrou estatisticamente significativa (Gráficos 5 e 6).

Gráfico 5. Análise comparativa das curvas de ganho ponderal entre as diferentes formas de amamentação, natural x artificial.

Gráfico 5. Análise comparativa das curvas de ganho ponderal entre as diferentes formas de amamentação, natural x artificial.

Gráfico 6.  Análise comparativa das curvas de ganho ponderal entre as diferentes formas de amamentação, natural x artificial (meninos).

Gráfico 6. Análise comparativa das curvas de ganho ponderal entre as diferentes formas de amamentação, natural x artificial (meninos).

O crescimento em estatura dos lactentes em quaisquer dos dois regimes de alimentação não mostrou diferenças estatisticamente significantes ao longo dos 12 meses de acompanhamento (Gráficos 7 e 8).

Gráfico 7. Análise comparativa das curvas de crescimento em comprimento entre as diferentes formas de amamentação, natural x artificial (meninos).

Gráfico 7. Análise comparativa das curvas de crescimento em comprimento entre as diferentes formas de amamentação, natural x artificial (meninos).

Gráfico 8. Análise comparativa das curvas de crescimento em comprimento entre as diferentes formas de amamentação, natural x artificial (meninas).

Gráfico 8. Análise comparativa das curvas de crescimento em comprimento entre as diferentes formas de amamentação, natural x artificial (meninas).

Frequência dos processos mórbidos e suas relações com o tipo de aleitamento

Os processos mórbidos ocorridos com os lactentes foram registrados ao longo do primeiro ano de vida e agrupados de acordo com o tipo de patologia apresentada, a saber:

A) Patologias do trato respiratório: resfriado comum, otite média aguda, bronquiolite, bronquite e broncopneumonia.

B) Patologias do trato gastrointestinal: diarréia aguda e diarréia persistente.

A frequência dos episódios de resfriado comum, bronquite e diarréia aguda foi significativamente maior nas crianças que receberam aleitamento artificial em comparação com aquelas que receberam aleitamento natural (Gráficos 9, 10 e 11).

Gráfico 9.  Frequência de episódios de resfriado comum entre os grupos de acordo com o tipo de aleitamento.

Gráfico 9. Frequência de episódios de resfriado comum entre os grupos de acordo com o tipo de aleitamento.

Gráfico 10. Frequência dos episódios de diarréia aguda entre os grupos de acordo com o tipo de aleitamento.

Gráfico 10. Frequência dos episódios de diarréia aguda entre os grupos de acordo com o tipo de aleitamento.

Por outro lado, a frequência dos episódios de otite média, broncopneumonia e diarréia persistente ainda que tenha sido maior no grupo que recebeu aleitamento artificial não revelou significância estatística em relação aos lactentes que receberam aleitamento natural (Gráficos 12, 13 e 14).

Gráfico 11. Frequência dos episódios de bronquite entre os grupos de acordo com o tipo de aleitamento.

Gráfico 11. Frequência dos episódios de bronquite entre os grupos de acordo com o tipo de aleitamento.

Gráfico 12.  Frequência dos episódios de diarréia persistente entre os grupos de acordo com o tipo de aleitamento.

Gráfico 12. Frequência dos episódios de diarréia persistente entre os grupos de acordo com o tipo de aleitamento.

Gráfico 1.  Frequência dos episódios de otite média entre os grupos de acordo com o tipo de aleitamento.

Gráfico 13. Frequência dos episódios de otite média entre os grupos de acordo com o tipo de aleitamento.

Gráfico 14. Frequência dos episódios de broncopneumonia entre os grupos de acordo com o tipo de aleitamento.

Gráfico 14. Frequência dos episódios de broncopneumonia entre os grupos de acordo com o tipo de aleitamento.

Este programa de incentivo ao aleitamento natural exclusivo por tempo prolongado evidenciou claramente, assim como outros programas implantados em outras comunidades de baixo nível sócio-econômico e desprovidas dos benefícios do saneamento básico, no Brasil e em outros países, ser um fator de contribuição para a redução das taxas de morbidade nos lactentes, devido à inquestionável proteção conferida pelo leite materno contra as infecções mais prevalentes que costumam ocorrer em situações de altas taxas de contaminação ambiental, como é nitidamente o caso da favela Cidade Leonor.

Conclusões

A implantação de um programa de incentivo ao aleitamento natural exclusivo em uma comunidade de favelados mostrou-se perfeitamente viável, desde que realizado com o devido planejamento, o forte engajamento de todo o pessoal pertencente à equipe de trabalho, bem como contar com condições adequadas de infra-estrutura para a execução do projeto. Deve-se sempre iniciar o processo de educação para a prática do aleitamento natural com grande antecedência ao nascimento da criança (idealmente deveria fazer parte rotineira do currículo escolar ainda durante a adolescência para ambos os sexos), posto que a futura mãe, e de preferência também o futuro pai, necessita estar firmemente convencida da importância de tal prática, e, ao mesmo tempo, estar suficientemente segura e confiante de que será capaz de alcançar seu objetivo. Eliminar possíveis mitos e tabus freqüentemente existentes na população em geral é a tarefa inicial prioritária para que posteriormente se torne possível proporcionar as informações corretas sobre os benefícios do aleitamento natural, e, assim ter a garantia de que as mesmas serão devidamente assimiladas, sempre deixando um amplo espaço aberto para discussões e esclarecimentos que se façam necessários.

É importante ter-se em mente que a prática do aleitamento natural não corrige as deficiências de um meio ambiente contaminado devido a inexistência de saneamento básico, funciona, porém, durante sua vigência, como um fator de proteção contra as agressões tão comuns presentes nestas comunidades socialmente desfavorecidas. Portanto, o uso do leite humano evita que as condições ambientais adversas já se façam sentir em um período extremamente precoce da vida, quando o ser humano apresenta maior vulnerabilidade às agressões infecciosas do meio ambiente. Entretanto, é necessário enfatizar que o leite materno protege a criança apenas durante o período em que está sendo ofertado e, que, portanto, não deixa memória imunológica duradoura.

A solução dos graves transtornos causados pela contaminação ambiental foge totalmente do escopo dos profissionais de saúde que provêm assistência direta à população. Trata-se, na verdade, de um problema de saúde pública que somente pode ser solucionado com uma firme vontade política de se implantar uma rede de saneamento básico adequada de extensão abrangente a toda população, bem como proporcionar condições dignas de moradia e trabalho para toda a sociedade.

Para uma leitura mais profunda sobre o tema recomendo a leitura do livro “Enteropatia Ambiental: uma conseqüência do fracasso das políticas sociais e de saúde pública” de minha autoria e publicado pela editora Revinter.

Um trabalho de pesquisa realizado no Brasil e de repercussão internacional

Conforme eu havia mencionado em nosso último encontro o presente texto refere-se a um estudo sobre aleitamento natural realizado por um grupo de consolidada tradição em pesquisa em nosso país. Este trabalho foi elaborado pelo grupo do Departamento Materno-Infantil da Universidade Feral de Pelotas, Rio Grande do Sul, tendo sido publicado no Journal of Pediatrics 2009;155:505-9. Trata-se da revista pediátrica de maior prestígio internacional e que apresenta alto fator de impacto na literatura médica. O trabalho intitula-se “Bed Sharing at 3 Months and Breast-Feeding at 1 Year in Southern Brazil” e está assinado pelos seguintes autores: Iná S.Santos, Denise M. Mota, Alicia Matijasevich, Aluísio J.D. Barros & Fernando C.F. Barros, e versa, portanto, a respeito do compartilhamento da cama entre o lactente e sua respectiva mãe aos 3 meses e qual a associação deste comportamento com a amamentação aos 12 meses de idade. 

Introdução

Muitos dos fatores que influenciam a forma como as mães alimentam seus filhos, assim como a duração do aleitamento natural são bem conhecidos, e dentre eles destaca-se a proximidade de ambos. Os métodos da mãe canguru para recém-nascidos de baixo peso e do alojamento conjunto para recém-nascidos adequados para a idade gestacional estão baseados nos efeitos benéficos oriundos da proximidade da relação mãe-filho e auxiliam no sucesso da amamentação.

Por outro lado, após a alta hospitalar os efeitos da proximidade mãe-filho com relação à prática do aleitamento natural também continuam sendo investigados. Semelhante ao alojamento conjunto, o compartilhamento da cama, aqui definido como mãe e filho dormindo à noite na mesma cama, tem sido demonstrado como fator positivo para o êxito da prática do aleitamento natural, porém as informações disponíveis na literatura a esse respeito ainda são muito escassas. Além disso, o compartilhamento da cama nos últimos anos tem sido pouco estimulado devido sua associação com o risco aumentado da Síndrome da Morte Súbita do Lactente (SMSL).

O objetivo do presente estudo foi investigar a associação entre o compartilhamento da cama aos 3 meses e a persistência da prática do aleitamento natural aos 12 meses de idade em uma coorte de crianças de Pelotas, em 2004.

Métodos

A coorte de Pelotas foi constituída por 99,2% de todas as crianças nascidas em 2004 e que vivem na área urbana da cidade, e também no bairro contíguo de Jardim América. Uma entrevista com cada mãe foi realizada no período peri-natal ainda quando estivesse internada no hospital por ocasião do nascimento do seu filho e novamente durante visita domiciliar aos 3 e 12 meses após o nascimento da criança.

Na entrevista dos 3 meses as mães responderam às seguintes perguntas: trabalho remunerado extra-domiciliar, dieta, aleitamento natural, cômodo da casa aonde a criança costumava dormir e informação sobre o hábito de compartilhar a cama com adultos ou outras crianças. Compartilhamento da cama foi definido como um comportamento habitual de compartilhar a cama com outra pessoa durante parte da noite ou durante toda a noite. A prática do aleitamento aos 3 meses foi definida como exclusivo, predominante (associado a água, chá ou sucos) ou parcial (associado a chá, sucos, água e outros alimentos líquidos ou semi-sólidos). Aos 12 meses a prática do aleitamento natural foi novamente avaliada por meio de uma entrevista pessoal à mãe.

Resultados

Esta coorte foi constituída por 4231 crianças nascidas vivas, em Pelotas, em 2004, representando 99,2% da população geral, tendo havido 0,8% de perdas ou recusa em participar da pesquisa. Na visita de seguimento aos 3 meses as mães de 3985 crianças foram entrevistadas (94,2% da amostra inicial; houve 181 perdas ou recusas e 65 mortes). Dentre estas crianças 2866 estavam recebendo aleitamento natural. Na visita de 12 meses houve 5,7% de perdas ou recusas e um total de 82 mortes, fazendo com que houvesse um total final de 3907 crianças. Considerando-se o total da coorte a prevalência da prática do aleitamento natural caiu de 71,9% aos 3 meses para 37,7% (n=1442) aos 12 meses de idade.

Tabela 1 resume as características das mães e das crianças que recebiam aleitamento natural aos 3 meses e o percentual de crianças que estava recebendo aleitamento materno aos 12 meses de idade.

Tabela 1 revela a associação entre a prática do aleitamento natural aos 12 meses e as seguintes variáveis com relação às mães: nível sócio-econômico, escolaridade, paridade, cor da pele, tipo de parto e trabalho extra-domiciliar. A persistência da prática do aleitamento natural aos 12 meses mostrou-se ser mais freqüente entre as crianças cujas mães relataram que compartilhavam a cama aos 3 meses; aos 12 meses, 59,2% das crianças que compartilhavam a cama aos 3 meses ainda recebiam aleitamento materno comparada com 44% daquelas que não compartilhavam a cama (p<0).

Figura 1.  Curva evolutiva da frequência de aleitamento materno entre as crianças que compartilhavam a cama e as que não compartilhavam a cama.

Figura 1. Curva evolutiva da frequência de aleitamento materno entre as crianças que compartilhavam a cama e as que não compartilhavam a cama.

Figura 2 mostra a curva evolutiva da prática do aleitamento materno desde os 3 até os 12 meses de idade comparando as crianças que compartilhavam a cama aos 3 meses com aquelas que não compartilhavam a cama aos 3 meses de idade. Como se pode apreciar a Figura 1 mostra que a taxa de desmame até os 12 meses mostrou-se mais rápido naquelas crianças que não compartilhavam a cama aos 3 meses.

Figura 2.Curva evolutiva da frequência de aleitamento materno entre as crianças que compartilhavam a cama e as que não compartilhavam a cama. 

Figura 2. Curva evolutiva da frequência de aleitamento materno entre as crianças que compartilhavam a cama e as que não compartilhavam a cama.

Conclusões 

Os autores afirmam que o compartilhamento da cama provê uma aproximação física e ao mesmo tempo facilita que a mãe esteja mais disponível às solicitações de se alimentar por parte do filho durante o período de sono, e também oferece conforto psicológico para a criança.

Os benefícios e os prejuízos para as crianças associados ao compartilhamento da cama tem sido objeto de inúmeras investigações, a maioria das quais desenhadas para identificar os potenciais fatores de risco para a ocorrência da SMSL. A interação entre o compartilhamento da cama e o hábito de fumar com a SMSL também tem sido explorada em várias pesquisas. Embora o compartilhamento da cama tenha sido desestimulado devido ao risco da SMS, alguns estudos têm demonstrado um risco aumentado apenas para as crianças cujas mães são fumantes. Estudos epidemiológicos tem demonstrado uma diminuição entre a associação da SMSL e o compartilhamento da cama, especialmente nos lactentes que receberam aleitamento natural exclusivo até os 4 meses de idade. Até o presente momento, entretanto não há evidências científicas suficientemente conclusivas para afirmar que o compartilhamento da cama seja um fator de proteção contra a SMSL.

De qualquer forma até que se chegue a uma conclusão definitiva a respeito dos riscos e benefícios do compartilhamento da cama, os pais devem ser alertados para evitar as práticas inseguras durante o sono dos seus filhos. Estas incluem o hábito de fumar no ambiente aonde a criança convive, o compartilhamento de sofás fofos, o uso de álcool ou outra drogas que alterem o nível de consciência do adulto que compartilha a cama com a criança. Além disso, os pais também devem ser informados a respeito das boas práticas de segurança para o sono dos seus filhos, tais como, colocar a criança em posição supina (de barriga para cima), sobre uma superfície firme, evitando, portanto, sofás, travesseiros, almofadas etc.

Minha Opinião

Particularmente, eu sempre fui um ardoroso defensor do aleitamento natural exclusivo por tempo prolongado, e devo afirmar que tenho obtido grande êxito em estimular as mães dos meus pacientes em amamentá-los. Entretanto, por inúmeras razões, inclusive algumas delas expostas neste mesmo trabalho, tal como o risco da morte súbita, bem como propiciar aos pais a privacidade necessária para a preservação de um relacionamento saudável, um período de merecido descanso à mãe que amamenta, por exemplo, não sou favorável à opinião de compartilhar a cama com o lactente. Está claro, porém, que esta não é uma posição radical e a decisão de compartilhar a cama ou não com o filho tem que ser definida pelo livre arbítrio dos pais. De qualquer forma este excelente trabalho científico traz à luz pontos para serem debatidos e meditados o que sem dúvida é uma das grandes riquezas da investigação científica quando realizada com metodologia adequada.