Síndrome do Intestino Irritável: um distúrbio funcional que pode acarretar importante desconforto aos pacientes

Atenção! As imagens e tabelas que possam ter sido referenciadas no texto estão em processo de atualização! Em breve você acessará uma versão atualizada deste artigo.

Introdução

Síndrome do Intestino Irritável (SII) é um transtorno funcional que pode se apresentar com diarréia intermitente ou constipação intestinal associada à dor abdominal crônica, ou mesmo ainda alternando diarréia e constipação. Embora ainda se desconheça com exatidão as causas desta síndrome, por um lado, sabe-se que a SII tem caráter absolutamente benigno quanto aos riscos de complicações graves. Por outro lado, está bem estabelecido que a SII pode provocar um impacto significativamente negativo na qualidade de vida dos pacientes devido a natureza imprevisível da intensidade das crises de diarréia e/ou das cólicas associadas à distensão abdominal e constipação, as quais podem ter um efeito extremamente limitante sobre a vida privada e profissional do paciente.

Entende-se por funcional porque não envolve qualquer anormalidade orgânica, isto é, não se detecta qualquer lesão macroscópica e/ou microscópica na mucosa intestinal nem tampouco é possível caracterizar alguma alteração bioquímica específica nesta síndrome por meio dos métodos de investigação clínica e laboratorial disponíveis atualmente ao alcance da medicina.

SII é também conhecida pela designação de Síndrome do Colon Irritável, porque se imaginava que apenas o intestino grosso estivesse envolvido na gênese dos sintomas; porém, como recentemente demonstrou-se que o problema está relacionado com a ocorrência de ondas peristálticas anormais e que o limiar para dor visceral envolvendo todo o intestino encontra-se diminuído nos pacientes portadores da SII tem-se procurado optar por esta designação, posto ser ela mais abrangente. No passado também foi denominada de Colite Nervosa por terem sido atribuídas as manifestações clínicas essencialmente a distúrbios emocionais. Embora haja evidências bastante sugestivas de envolvimento emocional como parte das manifestações clínicas a denominação Colite é totalmente inapropriada, posto que o sufixo ite designa inflamação, o que se sabe não ocorre na SII. Além disto, a designação de Colite Nervosa pode confundir com Colite Ulcerativaenfermidade que apresenta características clínicas e anátomo-patológicas bem definidas e totalmente diferentes da SII.

Atualmente está bem estabelecida a existência de uma série de mediadores químicos que são liberados na nossa circulação a partir de estímulos que atingem o sistema nervoso central, particularmente a região do hipotálamo, os quais vão atuar à distância sobre receptores localizados nos diferentes níveis do intestino, e, assim, determinam o surgimento das manifestações clínicas. Na verdade existe um verdadeiro eixo hipotálamo-trato digestivo através donervo vago, que é responsável pela ação efetora dos estímulos recebidos, interferindo diretamente na motilidade intestinal.

Sabe-se que a SII é responsável por pelo menos 20% das consultas médicas em pacientes adultos, mas tudo indica que esta é apenas a parte visível do “iceberg” desta afecção funcional, posto que se admite que a maioria dos pacientes não chega a procurar aconselhamento médico para cuidar dos seus sintomas. Estudos de investigação clínica visando detectar retrospectivamente o início dos sintomas têm demonstrado que as manifestações sintomáticas foram referidas a partir de tenra idade, na infância, e desde então passaram a acompanhar o paciente ao longo de toda sua existência.

Vale a pena referir que a primeira descrição desta síndrome em Pediatria se deve ao médico norte-americano Murray Davidson sob a designação de Diarréia Crônica Inespecífica, publicada em 1966 no Journal of Pediatrics. No nosso meio a primeira publicação de uma casuística da SII na infância pertence aUlysses Fagundes Neto, Marli de Almeida Pedra & Valéria de Castro Ferreira no Jornal de Pediatria (RJ) de 1985. Neste trabalho os autores relatam a experiência com o seguimento de 76 crianças com idade média de 18,1 mêses portadoras de diarréia crônica acompanhadas durante 15,6 mêses. Confirmam a característica benigna da SII e concluem que a mesma pode apresentar múltiplas características à medida que o paciente se encontra nos mais diferentes momentos da sua evolução para a vida adulta.

“Longa Caminhada” das manifestações clínicas da Síndrome do Intestino Irritável (SII) tem seu início nos primeiros meses e ao longo da vida revela suas diferentes formas de apresentação à medida que o paciente vai crescendo e se desenvolvendo. Vale enfatizar que muito freqüentemente a mãe ou o pai, ou ambos, sejam também portadores da SII. Por esta razão, ainda que possa parecer constrangedor para os pais, é necessário interrogá-los sobre a existência de possíveis sintomas sugestivos da SII que por ventura eles possam apresentar. Em caso da resposta ser afirmativa para qualquer um deles ou ambos, isto já dá uma boa pista para pelo menos se levantar a suspeita diagnóstica no nosso paciente.

Recém Nascido e Lactente até os 6 meses

Nesta faixa etária predominam essencialmente as manifestações de episódios intermitentes de choro intenso e prolongado, sem causa aparente, muito provavelmente devido a cólicas e distensão abdominal. Há também certa dificuldade para a eliminação de gases e fezes; não raramente o paciente pode apresentar tendência à constipação intestinal, as fezes podem se tornar endurecidas e ressecadas. Muito do que se convencionou denominar “cólica noturna” está diretamente relacionado com a SII. Este cortejo sintomático freqüentemente gera grande ansiedade e insegurança nos familiares o que acarreta uma grande tensão ambiental que acaba por se transmitir ao recém-nascido criando, assim, um ciclo vicioso de choro intenso e tensão ambiental difícil de ser rompido. Estes episódios costumam se repetir quase que diariamente caso não ocorra uma intervenção do Pediatra tratando de tranqüilizar os familiares e explicando de forma didática qual a razão de todo este complexo sintomático. Neste momento torna-se crucial dar aos familiares a segurança de que nada grave está ocorrendo com o recém nascido e que à medida que as tensões ambientais forem se desanuviando a tendência é de que haja uma regressão das manifestações clínicas. Vale ressaltar que esta sintomatologia pode se estender por tempo prolongado, alguns meses, surgindo através de crises episódicas muito relacionadas com a qualidade emocional do ambiente em que a criança vive. É importante assinalar que apesar da existência de todo este transtorno o recém nascido se alimenta muito bem e cresce normalmente sem qualquer agravo nutricional, o que atesta a natureza benigna da SII.

Nesta fase é importante fazer a diferenciação diagnóstica com Colite Alérgica porque a sintomatologia é bastante parecida, porém, variando em algumas nuances. Por exemplo, na SII as manifestações clínicas não costumam estar relacionadas com a alimentação, podem surgir a qualquer momento do dia ou da noite, ao passo que na Colite Alérgica as manifestações clínicas estão diretamente relacionadas com o ato da alimentação. Outro ponto importante de diferenciação diagnóstica é que na SII não há presença de sangue nas fezes, nem visível a “olho nu” nem tampouco sangramento oculto, o que é costumeiramente observado na Colite Alérgica. Um detalhe importante precisa ser observado caso se note algum sangramento no paciente que se suspeita ser portador da SII. Em virtude do constante esforço para evacuar pode haver a formação de uma fissura anal, e nestas circunstâncias o sangramento se dá em “fio de linha” com a presença de sangue vivo rutilante recobrindo as fezes diferentemente do que ocorre na Colite Alérgica, pois neste caso o sangramento ocorre misturado às fezes. Por outro lado, alguns pontos em comum também podem existir, em especial,episódios de regurgitação soem ocorrer em ambas às circunstâncias,muito embora, sejam motivadas por diferentes estímulos. Na SII é muito provável que a regurgitação ocorra pela contração da musculatura abdominal decorrente da dor das cólicas associada ao “stress” que a criança está sofrendo. No caso da Colite Alérgica a regurgitação se dá principalmente pelo relaxamento do esfíncter esofágico inferior em virtude da hipotonia do trato digestivo decorrente da própria alergia alimentar.

Lactentes acima de 6 meses e Pré-Escolares até 3 anos

Nesta faixa etária a principal queixa do paciente modifica-se totalmente em relação ao período imediatamente anterior da vida e Diarréia Crônica intermitente passa a ser a manifestação clínica predominante, podendo ou não estar associada a cólicas intestinais. O processo diarréico costuma instalar-se de forma insidiosa, as fezes tornam-se líquidas ou semi-líquidas, freqüentemente com a presença de restos alimentares não digeridos. Estes restos alimentares são na imensa maioria das vezes constituídos por alimentos de origem vegetal recobertos por uma capa de celulose tais como feijão, milho, ervilha, cenoura, banana etc. Este fato é decorrente do trânsito ser rápido nos colons não havendo, portanto, tempo para que as bactérias da flora colônica possam atuar no processo normal de fermentação da celulose. Em condições normais a celulose é transformada nos colons pelas bactérias aí residentes em ácidos graxos voláteis, posto que o ser humano não possui nenhum mecanismo enzimático competente para realizar a digestão da celulose. Os episódios diarréicos surgem por surtos sem uma razão aparente e, em virtude da tenra idade dos pacientes, teme-se que as perdas hídricas fecais possam levar à desidratação, por serem estas supostamente intensas, confundindo-se na maioria das vezes com quadro de infecção intestinal. Entretanto, dois aspectos de fundamental importância devem ser levados em conta para se fazer a diferenciação diagnóstica com infecção intestinal, a saber:

1- Na grande maioria das vezes apesar dos familiares referirem uma elevada freqüência do número das evacuações, não raramente até 10 vezes ao dia, o que, diga-se de passagem é absolutamente verossímil, e que contrasta com o bom aspecto clínico do paciente, que se apresenta ativo, muitas vezes irritado é verdade, mas que se mantém alerta contatando-se perfeitamente bem com o ambiente (Figura 1).

Vale à pena referir que o cortejo das evacuações geralmente obedece a uma seqüência que não é uniforme ao longo do dia. A primeira evacuação do dia costuma ser pastosa, muitas vezes mesmo endurecida, e à medida que as horas avançam progressivamente as fezes vão se tornando mais amolecidas até que por fim surge a diarréia franca. Um dado relevante é que apesar da elevada freqüência no número das evacuações as perdas hídricas e eletrolíticas são de pequena intensidade porque não há um processo secretor intestinal e nem tampouco uma Síndrome de Má AbsorçãoAs perdas hídricas são colônicas devido à motilidade acelerada e, portanto, não trazem repercussão sistêmica de monta. Pode haver presença de muco nas fezes, mas não há sangue vivo nem oculto, porque não ocorre processo inflamatório na mucosa colônicaA curva de crescimento pondero-estatural mostra-se uniforme (esta é uma informação extremamente importante para demonstrar que não se trata de um quadro de diarréia crônica devido a uma possível “Síndrome de Má Absorção”) (Figuras 2, 3, 4 e 5), caso não tenha havido intervenção dietética inapropriada com introdução de dietas hipoprotéica e hipocalórica (discutirei o tratamento dietético mais adiante).

Figura 2- Observar gráfico de crescimento uniforme bem proporcionado entre peso e estatura do paciente da Figura 1 .

Figura 2- Observar gráfico de crescimento uniforme bem proporcionado entre peso e estatura do paciente da Figura 1 .

Figura 4- Observar o gráfico do crescimento pondero-estatural da paciente da Figura 3; há um importante agravo nutricional antes do diagnóstico e posterior recuperação após início do tratamento dietético apropriado. Testes de digestão (Sobrecarga com Triglicérides) e absorção (D-xilosemia) anormalmente alterados.

Figura 4- Observar o gráfico do crescimento pondero-estatural da paciente da Figura 3; há um importante agravo nutricional antes do diagnóstico e posterior recuperação após início do tratamento dietético apropriado. Testes de digestão (Sobrecarga com Triglicérides) e absorção (D-xilosemia) anormalmente alterados.

Estes episódios de diarréia costumam ser recorrentes, com início muitas vezes sem causa aparente e término depois de alguns dias também sem uma explicação plausível. O comportamento errático deste transtorno funcional causa grande desconforto e insegurança aos familiares que, com justa razão, desejam saber a causa e as potenciais complicações desta “enfermidade”. Em certas situações é possível identificar a existência de alguma circunstância que tenha alterado a dinâmica ambiental e/ou familiar afetando diretamente o comportamento bio-psico-social do paciente e ser, assim, a provável causa da manifestação sintomática. Em outras ocasiões, porém, não é possível atribuir os episódios de diarréia a alguma causa específica, o que possivelmente tenha sido o fator que gerou uma série de mitos e especulações a respeito da gênese deste quadro diarréico. Dentre elas está a erupção dos dentes que se inicia ao redor dos 6 meses e termina por volta dos 2 anos, período no qual, em geral, também corresponde, respectivamente, com o início e o final das crises de diarréia. Nesta fase da vida praticamente a cada 2 meses novos dentes surgem e até se completar a dentição com os 20 “dentes de leite” vários episódios de diarréia coincidem com este fenômeno biológico. Uma outra possibilidade que em passado não muito remoto foi atribuida a causa dos sintomas, e, quem sabe, ainda possa perdurar nos dias atuais, é o que se convencionou denominar de “Diarréia Parenteral”.Hipoteticamente, tratar-se-ia de diarréia de origem não intestinal devido a um foco infeccioso à distância, muitas vezes observada em crianças que sofriam de algum processo infeccioso viral ou bacteriano, particularmente nas vias aéreas superiores, e que concomitantemente apresentavam quadro diarréico com as características daSII. Por todos estes motivos, acima expostos, este distúrbio funcional, nesta fase da vida, também foi denominado de “Diarréia Crônica Inespecífica” e na língua inglesa de “Toddler’s Diarrhea” (toddler: idade na qual a criança está aprendendo a andar).

2- Por outro lado, no caso de haver uma infecção intestinal devido às perdas hídricas e salinas pela diarréia, a qual geralmente vem associada a vômitos e febre (também importantes fatores de espoliação hídrica e salina), aquelas são tão intensas que rapidamente levam o paciente à desidratação, com reflexos clínicos evidentes, tais como, prostração, perda de peso agudo, alterações no turgor da pele, olhos encovados, diminuição ou mesmo ausência de lágrimas e boca sêca. A presença desses sinais e sintomas vai necessitaruma intervenção terapêutica de urgência para a reposição apropriada das perdas e para a manutenção do equilíbrio hidro-eletrolítico enquanto estiver em vigência o processo infeccioso que, como se sabe, é autolimitado (Figura 6).

Manejo Terapêutico

Lactentes acima de 6 meses e Pré-Escolares até 3 anos

Um dos pontos mais interessantes a respeito do período em que predominam os episódios de Diarréia Crônica Intermitente, dentro da “Longa Caminhada” da SII, diz respeito à conduta terapêutica, e, é o que passaremos a abordar com riqueza de detalhes, desde os aspectos folclóricos, que são inúmeros, até chegarmos aos conhecimentos com bases científicas.

Como já foi anteriormente mencionado, a primeira preocupação quando do início do episódio diarréico é com o potencial risco de desidratação e sua conseqüência imediata, o choque hipovolêmico. Portanto, a coerente ação terapêutica correspondente, caso a suspeita maior recaia sobre infecção intestinal, seria a utilização de soluções de rehidratação oral. Ocorre, porém, como também já foi referido, na SII as perdas hídricas e salinas não são de monta suficiente para fazer com que a criança tenha tanta necessidade de grandes reposições hidro-eletrolíticas, portanto, o paciente não terá sede intensa. Pequenos volumes hídricos são totalmente suficientes para repor as escassas perdas, e, assim sendo, o paciente costuma recusar a insistência do cuidador em oferecer continuamente maiores quantidades da solução de rehidratação. Além disso, a solução de rehidratação, por conter sal misturado com glicose, tem um sabor que não é bem apreciado por quem não necessita receber este tipo de tratamento, e daí freqüentemente a recusa. Esta situação, muito comumente, gera um conflito entre o cuidador, que tem a preocupação em não ver o paciente correr o risco de sofrer desidratação, e o próprio paciente, que não deseja ingerir maiores quantidades da solução de rehidratação. Esta disputa provoca uma grande tensão ambiental e, conseqüentemente, só agrava o problema. Em passado não muito remoto, um Tratado de Pediatria, altamente conceituado, de fama internacional e praticamente adotado como referência na especialidade, denominado Textbook of Pediatrics editado por Valdo Nelson, originalmente escrito em inglês e traduzido para inúmeros outros idiomas, inclusive português, recomendava explicitamente o uso do refrigerante Coca-cola como uma excelente solução de rehidratação oral, sob a alegação de que este refrigerante possuía em sua composição doses adequadas de Potássio. Como este refrigerante é conhecido mundialmente, e sua palatabilidade largamente aceita, foi rapidamente incorporado no nosso meio, naquela época, dentro do modismo próprio dos copiadores sem um mínimo espírito crítico (se era bom para os Estados Unidos deveria ser bom também aqui) como uma referência de solução de rehidratação oral e, assim, passou a ser receitado de forma quase que rotineira para crianças com diarréia. No entanto, Dr. Edgard Ferro Collares, Professor Titular de Pediatria da UNICAMP, pesquisador dotado de grande espírito crítico e absolutamente cético quanto a esta possível qualidade do refrigerante, realizou, nos anos de 1980, um detalhado estudo sobre a composição química dos refrigerantes disponíveis no mercado e constatou que nenhum deles, inclusive a Coca-cola, apresentava mínimas condições para serem utilizados como solução de rehidratação oral (Revista Paulista de Pediatria 3: 46-9,1985). Na verdade, não possuíam sais de hidratação e sim apenas altas concentrações de carboidratos (sacarose), constituindo-se em verdadeiros xaropes, de altíssima osmolaridade. Ora, sabemos que soluções hiperosmolares com grandes concentrações de carboidratos têm um tempo de esvaziamento gástrico muito rápido, e, conseqüentemente estimulam positivamente o reflexo gastro-cólico, induzindo à evacuação. Por conseguinte, o emprego deste refrigerante, ou de outros quaisquer disponíveis no mercado, em pacientes com diarréia devido à SII, somente irá provocar aumento ainda maior no número de evacuaçõesgerando, assim, um ciclo vicioso, praticamente irreversível, que elevará ainda mais a tensão ambiental trazendo conseqüências mais dramáticas para a relação paciente e seus familiares, e indubitavelmente mais diarréia. Portanto, em resumo, uma vez que a história detalhadamente obtida nos faz suspeitar que o paciente apresenta diarréia com as características da SII deve-se, em primeiro lugar tranqüilizar a família, em segundo lugar fazer um exame físico detalhado, incluindo a determinação do PESO do paciente (se possível ter uma informação fidedigna recente do PESO) para saber se houve ou não perda acentuada e a partir daí controlá-lo com freqüência, para, então, recomendar que o paciente ingira líquidos não hiperosmolares sob o regime da livre demanda.Como o processo diarréico costuma perdurar por alguns dias deve-se avaliar constantemente o paciente dando especial ênfase para a evolução ponderal. Em havendo preservação do PESO ou mesmo algum ganho ponderal podemos ter a certeza que estamos frente a um episódio de diarréia da SII e com isto transmitir à família a segurança que ela necessita para entender que este processo se autolimitará e não trará maiores repercussões nutricionais para o paciente. Vale a pena ressaltar que a determinação do PESO é o único parâmetro aritmético de que dispomos para avaliarmos com fidelidade os possíveis percentuais de perda ou ganho. Neste sentido, é fundamental que o equipamento de aferição do peso seja absolutamente confiável e sempre o mesmo, que o paciente esteja totalmente despido e que de preferência o paciente seja pesado no mesmo horário do dia anterior sob as mesmas condições dietéticas. Deve-se também, neste momento, alertar a família que outros episódios semelhantes a este deverão ocorrer no futuro e que a conduta deverá ser a mesma, mas sempre após a devida consulta médica.

Escolares e Adolescentes

Nos Escolares a “Longa Caminhada” da SII tem como manifestação proeminente o que se convencionou denominar Dor Abdominal Recorrente. Este termo foi cunhado pelo pediatra inglês John Appley, no final da década de 1950 (Arch Dis Child 33: 165-70, 1958), a partir de suas observações clínicas após ter consultado 1.000 crianças em idade escolar que se queixavam de dor abdominal, e que aparentemente não apresentavam evidencia de uma doença orgânica. Para melhor caracterizar esse grupo de pacientes Appley considerou como portadoras deDor Abdominal Recorrente aquelas crianças que haviam apresentado pelo menos 3 episódios de dor de intensidade suficientemente significativa para afetar suas atividades habituais por um período de no mínimo 3 meses. Excluía crianças menores de 3 anos e também aquelas que não haviam apresentado episódios de dor nos últimos 12 meses anteriores à consulta. Este conceito, que simplesmente descreve um padrão de sintomas sem levar em consideração uma possível etiologia orgânica, perdurou por muitos anos na literatura médica com grande aceitação apesar de certa rigidez conceitual, tanto no número de episódios quanto no tempo de duração dos sintomas. A idéia que norteou o tempo mínimo de duração em 3 meses foi a de excluir possíveis distúrbios digestivos isolados, banais, como também admitir que este prazo seria suficientemente amplo para que ocorresse o surgimento de outros sinais e/ou sintomas que viessem a facilitar o diagnóstico de uma enfermidade de cunho orgânico. Além disso é necessário também entender o momento temporal em que este conceito foi emitido. Na década de 50 a disponibilidade de exames laboratoriais de investigação diagnóstica era extremamente limitada, e, portanto, não permitia uma abordagem auxiliar mais profunda. Naquela época, o Pediatra apenas podia se apoiar na história e no exame clínico, e na presença de “alguma luz vermelha” ou sinal de alarme, para ajudar na discriminação entre causasorgânicas e não orgânicas de dor abdominal, que o levasse a prosseguir adiante com os parcos recursos tecnólogicos de investigação diagnóstica existentes.

Estudos epidemiológicos realizados no mundo ocidental demonstram que a SII tem sido diagnosticada em 0,2% das crianças com idade média de 52 meses atendidas por Pediatras Generalistas e de 22 a 45% das crianças entre 4 e 18 anos que foram atendidas por Gastroenterologistas Pediátricos. Alguns aspectos psicológicos, tais como ansiedade, depressão e outras múltiplas queixas somáticas têm sido relatadas em crianças portadoras da SII. Portanto, é sempre necessário buscar eventos potencialmente deflagradores dos sintomas, bem como é extremamente importante explorar possíveis fatores biopsicossociais como causa desencadeadora da sintomatologia. Recente trabalho de revisão da literatura médica realizado por Gieteling e cols., na Holanda (JPGN 47: 316-26, 2008), para determinar qual a frequência da persistência da dor abdominal crônica recorrente,de um total de 18 estudos envolvendo 1331 crianças e adolescentes, entre 4 e 18 anos de idade, acompanhadas durante 5 anos, detectaram quea dor abdominal persistiu em 29,1% dos casosVale ressaltar que a SII sob a forma de dor abdominal crônica recorrente na infância pode progredir para a vida adulta em uma porcentagem significativa de casos. Para confirmar esta afirmativa há uma vasta lista de publicações na literatura médica, porém, como exemplo, destaco uma mais recente publicada por Howell e cols. no Am J Gastroenterol 100: 2071-8, 2005.

Com relação às manifestações clínicas a Dor Abdominal aparece como a mais freqüente queixa durante a idade escolar. A Dor Abdominal apresenta alguns aspectos que são bastante característicos, tais como: 1- as crianças, que já conseguem ter um grau confiável de comunicação, referem que a dor se localiza preferentemente na região umbilical e se irradia em círculos concêntricos ao redor da cicatriz umbilical; 2- a dor é geralmente intensa o suficiente para provocar a incapacitação da criança realizar suas atividades físicas, seja de deveres bem como de lazer; 3- a dor pode surgir a qualquer momento do dia e perdurar por alguns minutos ou mesmo algumas horas; 4- a dor NÃO costuma surgir durante o sono, e este é um dado extremamente importante para diferenciá-la da Dor Abdominal de Origem Orgânica, pois esta última costuma surgir mesmo durante o sono, despertando o paciente.

Ao exame físico o paciente encontra-se em bom estado geral, e ao ser solicitado mostra o local da dor descrevendo círculos concêntricos ao redor da cicatriz umbilical; à palpação dos flancos pode-se sentir os colons gargarejantes e dolorosos.

Na Adolescência as manifestações clínicas passam a ser muito semelhantes a dos adultos. Nesta fase da vida os pacientes podem se queixar de episódios de diarréia alternados com períodos de constipação associados à distensão e dor abdominal.

Diante da alta prevalência das afecções funcionais do trato digestivo em adultos foi constituído um grupo de estudo composto por experts internacionais com o objetivo de estabelecer um consenso a respeito dos critérios diagnósticos de todas as síndromes funcionais gastrointestinais. Estes experts se reuniram em Roma em 1991, e aí elaboraram os critérios consensuados que passaram a ser conhecidos como os critérios de Roma I. Entretanto, a aplicação prática destes critérios resultou em inúmeras polêmicas, e como não houve aceitação universal das propostas aí definidas, decidiu-se pela criação de outro grupo de estudo que, em 1999, revisou e modificou alguns dos critérios anteriormente estabelecidos. Estes novos critérios passaram a ser designados deRoma II. Nesta ocasião pela primeira vez levou-se em consideração que também deveriam ser abordados alguns temas pediátricos, porém, estes se limitaram a apenas algumas manifestações clínicas e, assim mesmo, o foram de forma superficial. Não foram motivos de discussão as diferentes formas de apresentação da SII na infância. Mais uma vez, igualmente ao que sucedeu com os critérios deRoma I estes novos critérios também não vieram a satisfazer totalmente quando da sua aplicação prática. Por esta razão um novo grupo reuniu-se em 2006, novamente em Roma, e, assim, chegou-se aos critérios de Roma III. 

Desta vez deu-se uma ênfase mais abrangente às afecções funcionais em PediatriaPara tal, foi criado um Comitê para focalizar especificamente os critérios diagnósticos das Afecções Funcionais Gastrointestinais na infância e adolescência, período compreendido entre os 4 e 18 anos de vida, cujo trabalho, na integra, está publicado na revista Gastroenterology 130: 1527-37, 2006. O Comitê foi constituído pelos seguintes renomados gastroenterologistas pediátricos: André Rasquin (Montreal, Canadá), Carlo Di Lorenzo (Ohio, EUA), David Forbes (Perth, Australia), Ernesto Guiraldes (Santiago, Chile), Jeffrey Hyams (Connecticut, EUA), Annamaria Staiano (Nápoles, Itália) & Lynn Walker (Nashville, EUA).

Dentre as várias afecções funcionais a SII foi contemplada com especial destaque. Os membros do Comitê decidiram elaborar os seguintes critérios para o diagnóstico da SII:

1- Desconforto (sensação desconfortável não descrita como dor) abdominal ou dor associada a 2 ou mais dos seguintes sintomas por pelo menos 25% do tempo: a- alívio com a evacuação; b- início dos sintomas associados a alteração da freqüências das evacuações; c- início dos sintomas com alteração do formato (aparência e/ou consistência) das fezes.

2- Ausência de evidências de processo inflamatório, neoplásico e/ou alterações anatômicas e metabólicas que possam explicar as manifestações sintomáticas.

Vale salientar que, para que estes critérios sejam considerados válidos, os sintomas devem estar presentes pelo menos uma vez por semana, e, ao mesmo tempo, dentro dos últimos 2 meses anteriores ao diagnóstico.

Por outro lado, os membros do Comitê também estabeleceram critérios diagnósticos para aquilo que eles denominaram de Dor Abdominal Funcional, entendendo que esta última fosse uma entidade distinta da SII, a saber: 1- dor abdominal episódica ou continua; 2- critérios insuficientes para classificar em outra síndrome funcional; 3- ausência de evidências de processo inflamatório, neoplásico e/ou alterações anatômicas e metabólicas que possam explicar as manifestações sintomáticas.

Do meu ponto de vista esta divisão torna-se absolutamente desnecessária e mesmo redundante porque os sintomas descritos praticamente se superpõe àqueles referidos para a SII. Entendo que esta proposta vem a gerar mais confusão do que esclarecimento, porque estas manifestações que acima estão descritas para Dor Abdominal Funcional são parte da mesma síndrome que abarca a SII.

Os membros do Comitê elaboraram também uma lista de sintomas e sinais de alarme, o que me parece extremamente pertinente, as quais estão presentes em enfermidades que envolvem lesões orgânicas bem reconhecidas, para diferenciá-las da Dor Funcional, a saber: dor epigástrica persistente, dor persistente no flanco direito, disfagia, vômitos persistentes, sangramento no trato digestivo, diarréia noturna, história familiar de doença inflamatória intestinal ou doença celíaca ou úlcera péptica, dor abdominal que desperta a criança ou o adolescente do sono, artrite, doença perianal, perda de peso espontânea, desaceleração do crescimento linear, retardo da puberdade e febre de origem inderterminada.
Tratamento

Como se pode depreender de todo o exposto a respeito da “Longa Caminhada“da SII, por ser esta uma manifestação clínica funcional e altamente relacionada com o estado emocional do paciente, não há um tratamento medicamentoso específico para atuar sobre a causa do processo gerador dos sintomas. No entanto, é muito importante orientar os familiares e os pacientes, quando estes já têm capacidade de compreensão do problema, a respeito dos fatores que geram a sintomatologia, e, acima de tudo, tranqüilizá-los quanto à característica absolutamente benigna desta afecção funcional. Medicamentos sintomáticos para aliviar a dor abdominal durante os episódios ou para aliviar a constipação são plenamente justificados, mas sempre com o esclarecimento de que estamos atuando sobre as conseqüências, porém, não estamos eliminando a causa.