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15.1- O Pós-Doutorado: Um Projeto de Pesquisa Experimental

15.1.1- Introdução

A- Aspectos de Importância da Fisiologia dos Sais Biliares

A bile é uma solução aquosa complexa, constituída por compostos orgânicos e inorgânicos e que se encontra armazenada na vesícula biliar. Sua composição, cor, fluxo, viscosidade e conteúdo sólido totais variam largamente durante o decorrer do dia, assim como de uma espécie para outra (Figura 1).

Figura 1- Representação esquemática do ciclo de produção da bile a partir do fígado, armazenamento na vesícula biliar, liberação no duodeno e respectiva reabsorção no íleo terminal.

Figura 1- Representação esquemática do ciclo de produção da bile a partir do fígado, armazenamento na vesícula biliar, liberação no duodeno e respectiva reabsorção no íleo terminal.

Figura 2- Visão esquemática da cara posterior do fígado evidenciando a localização da vesícula biliar.

Figura 2- Visão esquemática da cara posterior do fígado evidenciando a localização da vesícula biliar.

Figura 3- Estrutura química do Ácido Cólico, sal biliar primário.

Figura 3- Estrutura química do Ácido Cólico, sal biliar primário.

Quando a bile alcança o duodeno uma grande proporção dos seus constituintes não estará irreversivelmente perdida nas fezes, ao contrário, em condições normais estará destinada a ser reabsorvida, retornará ao fígado e será reexcretada na bile.
Os sais biliares e a bilirrubina são produzidos no fígado e constituem 2 dos mais importantes solutos orgânicos componentes da bile; são também típicos exemplos do mecanismo do reaproveitamento anteriormente mencionado, muito embora se deem por vias distintas e independentes entre si. Os outros componentes orgânicos da bile são o colesterol e os fosfolípides, em especial a lecitina (Figura 2).

Os sais biliares vêm despertando a curiosidade dos químicos, bioquímicos, fisiologistas e médicos há mais de 150 anos. Como resultado direto deste interesse uma avalanche de conhecimentos sobre a natureza química e física dos sais biliares tem se acumulado na literatura científica. Entretanto, somente nestas últimas décadas têm sido descritos estados de enfermidade que são causados diretamente pelos sais biliares, ou então, de forma indireta, como resultado das alterações do seu metabolismo e/ou fisiologia, particularmente causadas pela degradação da microflora bacteriana intestinal sobre os mesmos.

No fígado do ser humano, a partir da molécula do Colesterol são sintetizados 2 tipos de sais biliares, por isto são chamados Primários, a saber: Ácido Cólico (Figura 3) e Ácido Quenodeoxicólico.

Os sais biliares constituem-se em compostos de 24 átomos de Carbono que possuem um núcleo com a configuração do ciclopentanoperhidrofenantreno, derivado do Colesterol. A cadeia lateral contém 5 átomos de Carbono que termina em grupo Carboxila (OH) e que se comporta como ácido orgânico, daí o nome Ácido Biliar; recebe a inclusão de um ou dois radicais hidroxilas (OH) em posições 7α e 12α. O Ácido Cólico é tri-hidroxilado (ácido 3α, 7α e 12α, trihidroxi, 5β colanóico) e o Ácido Quenodeoxicólico é dihidroxilado (ácido 3α e7α, dihidroxi, 5β colanóico). Os sais biliares estão ligados em forma peptídica com glicina e/ou taurina e a relação entre os compostos conjugados glicina/taurina se faz na proporção de 3:1. Este tipo de conjugação se dá no hepatócito via CoA e tem por objetivo proporcionar um aumento da solubilidade dos sais biliares em sistemas aquosos porque abaixa sua constante de dissociação. Os valores de pK destes conjugados são mais baixos do que o pH do conteúdo intestinal, por esta razão, os Ácidos Biliares existem no nosso organismo sob a forma de Sais de Sódio ou Potássio, por este motivo são denominados Sais Biliares (Figura 4).

Figura 4- Estrutura química dos ácidos biliares primários e secundários. Observar nas cadeias laterais a conjugação com glicina ou taurina.

Figura 4- Estrutura química dos ácidos biliares primários e secundários. Observar nas cadeias laterais a conjugação com glicina ou taurina.

Figura 5- Representação esquemática da circulação entero-hepática.

Figura 5- Representação esquemática da circulação entero-hepática.

Figura 6- Visão das estruturas anatômicas componentes da circulação entero-hepática.

Figura 6- Visão das estruturas anatômicas componentes da circulação entero-hepática.

Nos vertebrados a molécula do colesterol é o mais importante constituinte das membranas celulares, e a maioria dos tecidos do organismo sintetiza colesterol continuamente. A retenção excessiva do colesterol está associada a elevadas taxas do colesterol sérico e doença arterial. Assim sendo, torna-se necessário que o organismo disponha de meios apropriados para provocar a eliminação do excesso do colesterol sérico. Este objetivo é alcançado quimicamente pela conversão do colesterol em seus derivados hidrossolúveis, os sais biliares, os quais são secretados com a bile. Além disso, esta função é também fisicamente executada pela excreção do colesterol como tal, que passa a formar um complexo micelar constituído por sais biliares-lecitina-colesterol. Como se pode depreender os sais biliares são praticamente os únicos responsáveis pela excreção do colesterol do organismo; além de serem sintetizados a partir da molécula do colesterol atuam diretamente no seu transporte, criando as condições propicias de solubilização para eliminar seu precursor do organismo. Os sais biliares também induzem o fluxo biliar, isto é, estimulam o movimento dos fluidos durante sua secreção para o interior dos canalículos biliares, ainda dentro do parênquima hepático. Além disso, um eficiente sistema de transporte para a circulação sistêmica, localizado no íleo terminal, possibilita conservar a maior parte das moléculas dos sais biliares, posto que estes retornam ao fígado, e são novamente secretados na bile. Este processo é denominado Circulação Entero-Hepática o qual permite, por um lado, reciclar os sais biliares, e de outra parte, de forma concomitante, controlar a excreção do colesterol (Figuras 5-6).

A existência da circulação entero-hepática assegura a manutenção de uma concentração ideal dos sais biliares no organismo. Os sais biliares participam da circulação entero-hepática sob 2 formas de estrutura química, a saber: 1- sais biliares primários, Ácido Cólico e Ácido Quenodeoxicólico; 2- sais biliares secundários, Ácido Deoxicólico (ácido 3α e 12α, dihidroxi, 5β colanóico) e Ácido Litocólico (ácido 3α hidroxi, 5β colanóico), os quais são formados no íleo terminal a partir dos sais biliares primários decorrentes de uma mudança estrutural denominada 7-alfa desidroxilação, por ação das bactérias componentes da microflora normal, em especial as anaeróbias (Figuras 7-8).

Figura 7- Transformação do sal biliar primário Colato em sal biliar secundário Deoxicolato pela ação da enzima bacteriana acarretando a 7 alfa desidroxilação (em vermelho).

Figura 7- Transformação do sal biliar primário Colato em sal biliar secundário Deoxicolato pela ação da enzima bacteriana acarretando a 7 alfa desidroxilação (em vermelho).

Figura 8- Estruturas químicas dos sais biliares primários (Cólico e Quenodeoxicólico) e secundários (Litocólico e Deoxicólico).

Figura 8- Estruturas químicas dos sais biliares primários (Cólico e Quenodeoxicólico) e secundários (Litocólico e Deoxicólico).

Ácido Deoxicólico é prontamente absorvido a partir do íleo e do colon, retorna ao fígado aonde é reconjugado e secretado na bile, perfazendo cerca de 20% do total dos sais biliares, enquanto que o Ácido Litocólico é pouco solúvel à temperatura corporal, é absorvido em mínimas quantidades, sua maior parte é excretada nas fezes. A circulação entero-hepática é mantida por 2 bombas químicas, as quais extraem eficientemente os sais biliares e transportam-nos em sentido unidirecional. A primeira delas localiza-se no fígado e é responsável pela extraordinária rapidez pela qual os sais biliares retornam ao fígado, são extraídos do plasma e reexcretados na bile. A segunda bomba química está localizada no íleo terminal que remove 95% dos sais biliares que atingem esta porção do intestino e transporta-os para a circulação portal. Desta forma somente até 5% dos sais biliares sintetizados no fígado são eliminados nas fezes. Além dessas 2 bombas químicas, a vesícula biliar e o intestino delgado podem ser também considerados como bombas físicas.

Estima-se que o “pool” de sais biliares realiza a circulação entero-hepática 10 vezes por dia. Um indivíduo normal apresenta um “pool” de sais biliares de aproximadamente 3,5g e a circulação entero-hepática deste “pool” é da ordem de 35.000mg/24 horas.

Ao atingir o íleo terminal, cerca de 25% dos sais biliares primários conjugados com taurina ou glicina sofrem desconjugação por ação da flora bacteriana, principalmente anaeróbia, a qual existe em concentração elevada (aproximadamente 10 elevada a 9 colonias/ml de secreção ileal). Por outro lado, a maior parte destes sais biliares desconjugados é reabsorvida, retorna ao fígado e é novamente conjugada com glicina e/ou taurina dando sequência, assim, a seu ciclo diário de circulação.

A função mais importante dos sais biliares é, indiscutivelmente, criar um meio ambiente propício no lúmen jejunal para favorecer a solubilização das gorduras ingeridas com a dieta e assim permitir que o processo de digestão das mesmas se realize com máximo aproveitamento. Esta propriedade particular dos sais biliares primários está diretamente relacionada com sua capacidade de “detergência”. Detergentes são compostos químicos que apresentam dupla atividade, ou seja, uma porção da sua molécula interage de forma efetiva com a água (fração hidrofílica) ao passo que a outra porção o faz de forma débil (fração hidrofóbica). No caso dos sais biliares, as hidroxilas (radicais OH) e a cadeia lateral são hidrofílicas, ao passo que a estrutura esteróide é hidrofóbica (Figura 9).

Figura 9- Representação esquemática dos polos hidrofílicos e hidrofóbicos dos sais biliares.

Figura 9- Representação esquemática dos polos hidrofílicos e hidrofóbicos dos sais biliares.

Figura 10- Representação esquemática da formação da micela.

Figura 10- Representação esquemática da formação da micela.

Figura 11- Representação esquemática do processo de digestão das gorduras da dieta.

Figura 11- Representação esquemática do processo de digestão das gorduras da dieta.

Figura 12- Representação esquemática do processo absortivo do colesterol, dos ácidos graxos e dos monoglicerídeos.

Figura 12- Representação esquemática do processo absortivo do colesterol, dos ácidos graxos e dos monoglicerídeos.

Em baixas concentrações as moléculas dos sais biliares encontram-se dispersas em solução, mas em concentrações mais elevadas e dependendo de certas condições basais do fluido intestinal (pH, temperatura etc.) ao atingir a denominada concentração micelar crítica começa a ocorrer uma agregação molecular. Estes agregados são denominados micelas (Figura 10).

Em condições fisiológicas a concentração micelar crítica encontra-se ao redor de 1 a 3 mM, e, em adultos normais, a concentração dos sais biliares varia de 5 a 25 mM; por outro lado, em recém-nascidos e nos primeiros meses de vida esta concentração é significativamente mais baixa, ao redor de 1,2 a 3 mM. A criação da fase micelar juntamente com a solubilização dos compostos de gordura acelera a reação lipolítica (digestão da gordura) no sentido de sua completa realização e, ao mesmo tempo, aumenta consideravelmente a disponibilidade da gordura já digerida pela lípase pancreática sob a forma de glicerol e ácidos graxos (reação de desesterificação) para ser absorvida pelos enterócitos do jejuno (Figura 11).

No interior dos enterócitos irá ocorrer a reação de re-esterificação, ou seja, volta a ser formada a união do glicerol com os ácidos graxos (gordura), que serão transportados na circulação sanguínea pela veia porta em direção ao fígado ligados pela β-lipoproteina, fechando-se o ciclo da digestão-absorção das gorduras (Figura 12).

Pode-se, portanto, depreender que os sais biliares desempenham algumas funções de extrema importância para que os processos digestivo-absortivos se deem de forma plena e além disso têm também crucial papel no controle dos níveis séricos do colesterol no organismo humano. Por outro lado, alterações patológicas na localização da microflora bacteriana do trato digestivo interferem diretamente nos mecanismos fisiológicos acima descritos e irão provocar inúmeros efeitos colaterais indesejáveis para o organismo, sobre os quais versou este projeto de pesquisa experimental.