Minha trajetória na carreira Acadêmica na Escola Paulista de Medicina (EPM) – Parte 2

20.1- A inédita experiência vivenciada no trabalho de campo na Favela Cidade Leonor: a partir das pesquisas realizadas nesta localidade resultou a descrição da Enteropatia Ambiental, a qual se tornou universalmente reconhecida na comunidade científica

Desde o início das atividades na nossa especialidade, nos anos 1970, o problema mais grave de saúde pública nos países chamados subdesenvolvidos, aí incluído o Brasil e praticamente todos os países da América Latina, em maior ou menor extensão, dizia respeito ao terrível binômio Diarreia-Desnutrição, responsável pelas altíssimas taxas de mortalidade infantil, bem como naquelas crianças menores de 5 anos. Tanto no nosso Ambulatório quanto na nossa Enfermaria de Pediatria do Hospital São Paulo, aonde eram internados os casos mais graves, a imensa maioria dos pacientes por nós atendidos, lactentes menores de 1 ano idade, apresentava queixa de diarreia crônica sempre acompanhada de algum grau de desnutrição, inclusive marasmo era bastante frequente ser observado. Por maiores que fossem nossos esforços para tratar adequadamente estes pacientes, esbarrávamos a miúde em um obstáculo praticamente intransponível, a persistência da diarreia associada à desnutrição. Naquela ocasião, por coincidência, começavam a surgir na literatura médica as primeiras publicações descrevendo as intolerâncias alimentares, em especial as intolerâncias aos carboidratos da dieta, mais especificamente a intolerância à lactose, que cursavam com diarreia crônica. Estas intolerâncias eram mais prevalentes em lactentes e crianças de baixa idade e acarretavam também agravo nutricional de variável intensidade, mas geralmente ocorriam em famílias de baixo poder econômico vivendo em condições desprovidas de saneamento básico e ausência de água potável. Todas estas particularidades eram idênticas a aquelas vistas em nossos pacientes, o que nos dava uma perspectiva de oferecer um tratamento dietético apropriado para superar o problema. Quando os pacientes encontravam-se internados conseguíamos debelar o processo diarreico e dar alta hospitalar com a prescrição de uma dieta especialmente por nós elaborada, a denominada Fórmula de Frango, composta por uma mistura de carne de frango, óleo de milho, glicose, polivitamínicos e Cálcio, visto que ainda não existiam no mercado brasileiro as fórmulas especiais atualmente disponíveis. Esta dieta era prescrita no momento da alta e os pacientes eram encaminhados para nosso Ambulatório de ex-internados, totalmente assintomáticos, para acompanhamento clínico da recuperação nutricional. Porém, para nossa surpresa, porque não dizer frustração, eles retornavam a miúde com a mesma queixa anterior, ou seja, diarreia associada a desnutrição. Diante desta nua e crua realidade decidimos por uma completa mudança de atitude, pois como não era possível obter o sucesso desejado pela forma que vínhamos atuando, em um número significativo de pacientes, invertemos a situação, em vez de continuarmos atendendo no nosso Ambulatório, fui ao encontro aonde eles viviam, teria que conhecer com riqueza de detalhes as condições de vida da nossa clientela. Era preciso travar contato direto com suas dificuldades, seus anseios, seus usos e costumes, enfim tínhamos que aprender uma nova forma de nos relacionar com nossos pacientes, era preciso mudar a velha atitude contemplativa, aonde o Serviço de Saúde funcionava como centro de referência para acolher a clientela. Tornava-se fundamental, portanto, conhecer o habitat natural dos nossos pacientes para melhor entender toda sua problemática de vida; mudávamos, assim, um conceito tradicional da Medicina, iríamos passar a oferecer aos pacientes o que poderia ser o melhor para eles dentro das suas realidades de vida e das condições do seu meio ambiente.

Figura 1- Visão aérea de uma parte da favela, aonde se visualizam os barracos e o córrego da Água Espraiada.

Figura 1- Visão aérea de uma parte da favela, aonde se visualizam os barracos e o córrego da Água Espraiada.

Figura 2- Foto aérea obtida desde a favela avistando uma das cabeceiras da pista do aeroporto de Congonhas.

Figura 2- Foto aérea obtida desde a favela avistando uma das cabeceiras da pista do aeroporto de Congonhas.

De fato no início de 1981 esta oportunidade se ofereceu por inteiro. Como a maioria dos nossos pacientes era proveniente da zona sul de São Paulo, e vivia em condições precárias, com alto grau de insalubridade ambiental, em um encontro casual com o Sub-Prefeito da Vila Mariana, sr. Armando Borges de quem era um antigo amigo, comentei a nossa constante frustração quanto aos insucessos terapêuticos em relação aos nossos pacientes. Ele comentou sobre a existência de uma grande favela localizada próxima ao aeroporto de Congonhas denominada Cidade Leonor que poderia vir a ser um campo avançado de trabalho caso viesse a ser do meu interesse. Fui então com ele conhecer o local para avaliar a possibilidade de efetivamente desenvolver ali as atividades de campo que havíamos imaginado. A favela Cidade Leonor foi erguida às margens do córrego da Água Espraiada na década de 1940, em uma área da municipalidade denominada de fundo de vale, tem uma extensão aproximada de 3 km, desde a rua Califórnia até a rua Pedro Bueno, aonde atualmente está construída a Avenida Roberto Marinho, no bairro de Santa Catarina. O córrego da Água Espraiada nasce na região do ABCD paulista e percorre uma longa distância até desaguar no rio Pinheiros na região do Brooklin, entre as pontes do Morumbi e a Estaiada (Figuras 1-2).

Figura 3- Vista aérea da região da Vila Santa Catarina aonde a favela cidade Leonor está implantada.

Figura 3- Vista aérea da região da Vila Santa Catarina aonde a favela cidade Leonor está implantada.

Figura 4- Vista aérea panorâmica da favela cidade Leonor e sua conexão com a região urbanizada.

Figura 4- Vista aérea panorâmica da favela cidade Leonor e sua conexão com a região urbanizada.

Figura 5- Vista aérea mais detalhada do conglomerado de barracos e o contato direto com a área urbanizada.

Figura 5- Vista aérea mais detalhada do conglomerado de barracos e o contato direto com a área urbanizada.

Figura 6- Vista aérea dos barracos margeando o córrego da Água Espraiada.

Figura 6- Vista aérea dos barracos margeando o córrego da Água Espraiada.

Figura 7- Visão do córrego da Água Espraiada repleto de lixo e alguns moradores, adultos e crianças nas suas imediações.

Figura 7- Visão do córrego da Água Espraiada repleto de lixo e alguns moradores, adultos e crianças nas suas imediações.

Figura 8- Visão do córrego da Água Espraiada e dos barracos erguidos às suas margens, servindo como uma verdadeira cloaca a céu aberto.

Figura 8- Visão do córrego da Água Espraiada e dos barracos erguidos às suas margens, servindo como uma verdadeira cloaca a céu aberto.

Figura 9- Crianças moradoras da favela brincando dentro e às margens do córrego.

Figura 9- Crianças moradoras da favela brincando dentro e às margens do córrego.

Figura 10- Criança moradora da favela.

Figura 10- Criança moradora da favela.

Figura 11- Crianças moradoras da favela às margens do córrego.

Figura 11- Crianças moradoras da favela às margens do córrego.

Figura 13- Nossa equipe de trabalho com os moradores locais: da esquerda para a direita Tuta, Magnólia e Henrique, com algumas crianças da comunidade.

Figura 13- Nossa equipe de trabalho com os moradores locais: da esquerda para a direita Tuta, Magnólia e Henrique, com algumas crianças da comunidade.

Figura 14- A sede da Associação dos Favelados aonde funcionava nosso ambulatório.

Figura 14- A sede da Associação dos Favelados aonde funcionava nosso ambulatório.

Figura 15- Magnólia e eu revisando as fichas dos nossos pacientes.

Figura 15- Magnólia e eu revisando as fichas dos nossos pacientes.

Figura 16- Tuta após ser devidamente instruído tornou-se responsável por obter as medidas antropométricas dos nossos pacientes.

Figura 16- Tuta após ser devidamente instruído tornou-se responsável por obter as medidas antropométricas dos nossos pacientes.

Figura 17- Dra. Márcia Kallas e a atendente Magnólia em atividade assistencial.

Figura 17- Dra. Márcia Kallas e a atendente Magnólia em atividade assistencial.

A favela Cidade Leonor é constituída pela construção de barracos erguidos em ambas as margens do córrego e se estendem ao longo do mesmo, constituindo contornos irregulares que chegam a se expandir lateralmente por cerca de 50 metros das suas margens. Seus limites, no entanto, são contidos pela existência de casas residenciais construídas em áreas urbanizadas providas de saneamento básico. O tamanho dos barracos é variável, medindo cerca de 3×4 metros, em sua maioria são construídos de madeira ou em alvenaria proveniente de restos de construção, pelos próprios moradores. O teto é geralmente coberto com telhas Brasilit, o chão, em algumas casas é cimentado, mas na maioria delas é de terra batida. Usualmente o interior do barraco é dividido em 2 cômodos e, para tal, os moradores costumam utilizar algum mobiliário (Figuras 3-4-5).

Algumas áreas da favela dispunham de água encanada comunitária, mas nenhuma delas possuía rede de esgoto ou cisternas, os dejetos eram despejados diretamente no córrego, que veio a ser transformado em uma verdadeira fossa séptica a céu aberto (Figuras 6-7-8).

Frequentemente podia-se observar crianças moradoras do local brincando nas águas do córrego (Figuras 9-10-11).

Uma vez conhecida a área de potencial futura atuação fui apresentado pelo Sr. Armando Borges aos dirigentes da Associação dos Favelados da Cidade Leonor. Fomos então recebidos por uma Comissão de moradores da comunidade para expor nosso plano de trabalho, que consistia em proporcionar assistência à saúde para a população pediátrica local, visando fundamentalmente contemplar ações assistenciais básicas tendo como retaguarda técnico-científica o Hospital São Paulo. Nossa proposta foi inteiramente acolhida pela comunidade e em seguida passamos a operacionalizar nossas atividades. Para executar nosso projeto contávamos com uma equipe constituída pelos nossos Pos-Graduandos e também envolvemos os próprios moradores da comunidade, em especial o sr. Henrique, líder político local, a sra. Magnólia, que era atendente de enfermagem, e o sr. Tuta, morador local que se voluntariou para participar do projeto. Inicialmente, tratamos de aproveitar a extraordinária experiência de trabalho de campo que eu havia obtido no Parque Indígena do Xingu, o que significava divulgar por toda a comunidade a existência do novo serviço de saúde totalmente gratuito. Para este fim, delimitamos geograficamente a área de abrangência da nossa atuação e juntamente com sr. Henrique visitei casa por casa para anunciar nossos serviços e convidar a população pediátrica a fazer uso dos mesmos. Em pouquíssimo tempo passamos a atender uma enorme clientela de crianças que 2 vezes por semana vinham ao barracão da Associação em busca de atenção à saúde (Figuras 13-14-15-16-17).

Seguindo os preceitos tradicionais de atuação em uma determinada comunidade era necessário identificar a magnitude da vulnerabilidade nutricional das crianças da mesma, para que se pudesse a posteriori oferecer propostas adequadas para corrigir as possíveis distorções detectadas. Por esta razão, como medida inicial era imperioso sabermos qual o estado nutricional dessa nossa clientela, e para tal, foi realizada uma pesquisa da avaliação do estado nutricional das crianças menores de 5 anos. Esta pesquisa resultou na tese de Mestrado da Dra. Márcia Kallas, que sob minha orientação, revelou, para nossa preocupação, que mais de 50% das crianças desta comunidade eram desnutridas, com a agravante de que desnutrição crônica foi o padrão predominante.

A partir desta constatação urgia a necessidade de obtermos outras informações sobre o estado de saúde das crianças; passamos então a realizar exames parasitológicos de fezes, e verificamos que 100% das crianças apresentavam um ou mais parasitas. Como a taxa de diarreia era muito elevada realizamos um novo projeto que revelou que a presença de agentes bacterianos e virais enteropatogênicos nas fezes suplantavam 50% tanto nos casos como nos controles, o que denunciava o altíssimo grau de contaminação ambiental ao qual estas crianças estavam expostas. Esta pesquisa, sob minha orientação, resultou na tese de Mestrado da Dra. Arelis LLeras, médica venezuelana, que para obter as amostras de fezes fazia visitas domiciliares em busca de crianças com e sem diarreia. Dra. Tania Viaro, sob minha orientação, realizou um trabalho de pesquisa acompanhando lactentes desde o nascimento até o fim do primeiro ano de vida para avaliar os aspectos clínicos e nutricionais evolutivos das crianças e também comparar os benefícios do aleitamento natural exclusivo em relação ao aleitamento artificial; foi possível demonstrar nitidamente as enormes vantagens do primeiro sobre o segundo, o que resultou na sua tese de Mestrado. A partir desse momento passamos a ter instrumentos bastante seguros para propor uma intervenção de caráter nutricional e cultural na população desta comunidade. Como verificamos que no trabalho da Dra. Tânia Viaro a duração da prática do aleitamento natural exclusivo alcançava a taxa de apenas 21% ao cabo de 30 dias de vida do lactente, tornava-se premente a tentativa de mudar a realidade dietética das crianças desta comunidade; visto que o grau de contaminação ambiental era tão alarmante, fazia-se obrigatória uma intervenção para pelo menos minimizar esse efeito deletério do meio ambiente, já que a solução definitiva dessa condição indigna de vida, escapava da esfera médica, era sim um problema sanitário, que envolve a descontaminação do meio ambiente pela implantação do saneamento básico.  Como este tipo de ação fugia totalmente à nossa capacidade de resolução, pensamos em uma forma paliativa de intervenção que estaria ao alcance das nossas possibilidades de atuação. Para colocar em prática esta ideia, Dra. Fátima Lindoso, sob minha orientação, desenvolveu o projeto de implantação da promoção do aleitamento natural exclusivo por tempo prolongado, e que resultou na sua tese de Doutorado. Em síntese, quando as gestantes matriculadas no serviço de orientação pré-natal atingiam o final do primeiro trimestre de gestação eram encaminhadas ao serviço de Gastroenterologia Pediátrica para serem submetidas a uma entrevista para serem incluídas no projeto, se assim o desejassem. O projeto de incentivo à prática do aleitamento natural constituiu-se basicamente de uma relação pessoal entre a gestante e Dra. Fátima, e constava de palestras periódicas, discussões em grupo, orientação individual, demonstração prática de aleitamento natural etc. Os temas abordados nesse período versavam sobre as modificações ocorridas no corpo da futura mãe em decorrência do avançar da gravidez, a função da glândula mamária, o aleitamento materno e sua importância para o binômio mãe-filho, mitos, tabus e desmame, causas e técnicas de amamentação. Ao término de cada palestra eram abertas discussões entre as gestantes com o intuito de promover a troca de experiências pessoais. Após o nascimento das crianças, durante o acompanhamento de puericultura os assuntos foram sendo ampliados, tais como, técnicas de amamentação e como evitar o desmame, adequação do leite materno às necessidades nutricionais do lactente, época do início da introdução dos alimentos do desmame e tipo de alimentos utilizados, programa de vacinação etc. O resultado desse projeto foi altamente satisfatório, pois a maioria das mães aderiu de forma integral ao aleitamento natural, vencendo os inúmeros mitos e tabus que estavam profundamente arraigados na cultura popular; os lactentes apresentaram uma evolução ao longo dos primeiros 6 meses de vida praticamente isenta de processos infecciosos respiratórios e/ou gastrointestinais, com crescimento pondero-estatural superponível ao percentil 50 do padrão internacional de referência para a curva de crescimento. Vale ressaltar, porém, que este tipo de comportamento de saúde apenas tem vigência enquanto o aleitamento materno perdura, posto que o leite humano não deixa memória imunológica duradoura, uma vez findo o aleitamento a criança passa a se tornar vulnerável aos efeitos deletérios do ambiente contaminado, mas pelo menos já em uma idade mais avançada e de menor risco de morbi-mortalidade (Figuras 18-19).

Figura 18- Dra. Fátima Lindoso

Figura 18- Dra. Fátima Lindoso

Figura 19- Exitoso grupo de mães e lactentes de implantação do projeto de aleitamento natural na comunidade.

Figura 19- Exitoso grupo de mães e lactentes de implantação do projeto de aleitamento natural na comunidade.

Outras pesquisas de importância crucial para a elucidação da história natural da Enteropatia Ambiental foram desenvolvidas pelas Dra. Maria Ceci do Vale Martins e Rosa Helena Porto Gusmão, ambas sob minha orientação. Ceci demonstrou a existência de sobrecrescimento bacteriano da flora colônica no intestino delgado em mais de 60% das crianças faveladas mesmo na ausência de manifestações diarreicas, o que demonstrou claramente a influência extremamente nefasta do meio contaminado sobre seus habitantes, enquanto que Rosa Helena descreveu as graves alterações morfológicas da mucosa jejunal à microscopia óptica comum e eletrônica nestes mesmos indivíduos.

A somatória destes estudos independentes permitiram descrever de forma absolutamente cristalina esta entidade que tanto infortúnio causa em uma parcela significativa das populações de crianças pertencentes à famílias que vivem em locais insalubres desprovidas de saneamento básico, em diversos locais do nosso planeta, por uma flagrante consequência do fracasso das políticas sociais e de saúde pública. A resultante de toda esta condição de vida totalmente indigna leva à formação de indivíduos que não são úteis a si próprios e nem tampouco à sociedade devido aos descasos dos governantes que tanto os vêm maltratando.