Capítulo 4: Meu querido mestre e amigo Horácio Toccalino: um exemplo de determinação e perseverança na vida pessoal e profissional, que me estimulou a assumir um compromisso inarredável

Assim que cheguei ao Policlínico Alejandro Posadas, em Buenos-Aires, para cursar minha residência de terceiro ano, em 1973, agora na especialidade de Gastroenterologia Pediátrica, já no primeiro contato com Toccalino (Figuras 1-2-3-4) tive uma nítida sensação de que seria recebido com especial atenção, o que eu poderia traduzir com a expressão “empatia recíproca à primeira vista”.

De fato, o tempo somente fez confirmar esta primeira impressão. Ao longo de todo o ano, tanto no campo profissional como no pessoal, sempre mantivemos um relacionamento extremamente amistoso, dava até a percepção de que já nos conhecíamos de longa data, eu me sentia muito à vontade em sua companhia, principalmente quando juntos atendíamos os pacientes no ambulatório de gastroenterologia. No intervalo entre as consultas sempre arranjávamos alguns minutos para conversar sobre assuntos de trabalho, de planos futuros ou mesmo de temas absolutamente informais, até de problemas pessoais e familiares. Enfim, sentia que ele havia me adotado e que eu havia me apropriado daquela adoção com muita satisfação, mesmo porque este relacionamento tão afetivo perdurou nos anos que se seguiram até sua morte prematura em dezembro de 1977. Sim, infelizmente Toccalino faleceu muito jovem, aos 48 anos, com muitos projetos pessoais e profissionais para serem desenvolvidos.  Sem dúvida alguma, o mais caro deles, no entanto, era a fundação da Sociedade Latino Americana de Gastroenterologia Pediátrica e Nutrição (LASPGHAN), a qual se logrou concretizar em outubro de 1975, em São Paulo, durante o transcurso do Congresso Pan-Americano de Pediatria. Anteriormente, porém, em 1974, em plena realização do Congresso Mundial de Pediatria, em Buenos Aires, em um determinado dia, nos reunimos para almoçar em uma churrascaria denominada El Gaucho Imortal, Toccalino, Licastro, Martins Campos (José Vicente Martins Campos, gastroenterologista brasileiro, embora sendo especialista de adultos, tinha grandes interesses em investigação na área da gastroenterologia pediátrica, de quem me tornei amigo e admirador, participava ativamente dos eventos pediátricos e era um grande amigo de Toccalino desde longa data). Vínhamos de um encontro da Sociedade Latino Americana de Investigação Pediátrica, em Escobar, cidade localizada nas vizinhanças de Buenos Aires. Durante o almoço Toccalino manifestou seu descontentamento com os rumos daquela Sociedade, porque entendia que a gastroenterologia estava sendo cada vez mais marginalizada em detrimento de outras especialidades pediátricas, em especial a endocrinologia e a nefrologia. Toccalino sentia que havia chegado o momento de se fundar uma Sociedade especificamente voltada à gastroenterologia, já haveria uma massa crítica suficiente para tal empreendimento. Ele conhecia alguns colegas no Uruguai que certamente adeririam à ideia, também mesmo no Brasil já havia alguns embriões da especialidade sendo gestados.

Criaríamos uma Sociedade tendo como pilares de sustentação o eixo Argentina, Uruguai e Brasil, pouco a pouco colegas de outros países seguramente viriam também a se incorporar nessa nova proposta. Martins Campos prontamente concordou com a ideia, o mesmo ocorrendo com Licastro. Eu também concordei de imediato, mesmo porque afinal das contas quem era eu para emitir qualquer opinião a respeito de um assunto sobre o qual não tinha a menor experiência, fiz o que meu mestre mandou. Ato seguinte, Martins Campos lançou mão de um guardanapo de papel do restaurante e elaborou a primeira ata de fundação desta nova Sociedade com a subscrição dos quatro presentes. Ficou então combinado que no ano seguinte durante o transcorrer do Congresso Pan-Americano, em São Paulo, nós criaríamos oficialmente a Sociedade Latino Americana de Gastroenterologia Pediátrica (LASPGHAN). Toccalino e Martins Campos se ocuparam de contatar os potenciais membros da futura Sociedade, convidando-os para a reunião oficial da sua fundação. Tínhamos praticamente um ano inteiro para desenvolver essa empreitada com êxito, era tempo suficiente. Eu fiquei encarregado de organizar a reunião, a qual se realizou na Escola Paulista de Medicina, no anfiteatro de Pediatria do Hospital São Paulo, em outubro de 1975 (Figura 4).

Vinte e cinco colegas latino-americanos firmaram a constituição desta nova Sociedade; estava enfim, naquele dia, tornando-se realidade o tão almejado sonho de Toccalino (Vide cópia da ata abaixo).

Figura 4.7- Transcrição da ata de fundação da LASPGHAN (abaixo).

Infelizmente, porém, naquela mesma ocasião ele tinha acabado de receber a notícia de que estava enfermo e o diagnóstico era de uma doença extremamente grave, ele sofria de um tipo muito raro de câncer, extremamente agressivo, incurável para os conhecimentos científicos daquela época e que teria uma evolução bastante rápida.

Entretanto, em um ato de enorme bravura e autocontrole, para não prejudicar os andamentos da fundação da Sociedade, o que era para ele uma questão primordial, decidiu não contar a ninguém o seu padecimento. Assim que terminou o Congresso, de São Paulo mesmo viajou diretamente para Nova Iorque, na tentativa desesperadora de encontrar alguma solução, ainda que paliativa fosse, para sua doença (Vide trecho da carta por ele escrita e a mim dirigida abaixo, em 29 de novembro de 1975).

Tradução dos postulados: 1- seguir o modelo argentino da especialidade; 2- Martins Campos divulgando nossa sociedade na Europa; 3- os argentinos e você (eu) fazendo o mesmo nos EUA, especialmente com os amigos Nichols e Torres-Pinedo; 4- realizar os encontros da sociedade periodicamente quando deva corresponder à data proposta; 5- publicar regularmente e de boa qualidade nos Arquivos de Gastroenterologia. Caso cumpramos estes postulados ninguém será capaz de frear os Latino-americanos. Querido Ulysses novamente obrigado pela sua carta, mas necessito muitas outras cartas falando a respeito dos 5 postulados. Eu as espero!!! 

Desafortunadamente, porém, apesar do tratamento quimioterápico proposto e realizado, a cura não era viável, o prognóstico emitido foi que inexoravelmente o câncer progrediria, ele não teria muito mais tempo de vida, provavelmente não mais que seis meses (na realidade ainda viveu três anos mais após o diagnóstico). Mas, apesar de todo este sofrimento e frustração quanto ao futuro próximo, ele não deixou se abater animicamente, ao contrário, o florescimento da nova Sociedade passou a ser o grande estímulo da sua existência daí em diante. Durante sua estada em Nova Iorque me escrevia cartas, nas quais vislumbrava o sucesso futuro da nossa Sociedade, mas para que tal êxito fosse alcançado deveríamos seguir rigorosamente os determinados postulados e a mim ele atribuía a responsabilidade de assim fazê-los cumprir. Toccalino retornou dos Estados Unidos, recobrou suas forças, continuou sua missão de fortalecer nossa Sociedade de forma obstinada viajando frequentemente enquanto sua saúde assim o permitiu, para consolidar a recém-nascida LASPGHAN. Eu assumi com ele um compromisso irrestrito, continuar a luta de manter viva a chama que com tanto sacrifício foi por ele acesa e, mais ainda, fazer florescer nossa Sociedade, tornando-a reconhecida mundialmente. Não imaginava, porém, naqueles distantes dias de 1975 que em algum momento futuro eu teria as forças suficientes para avançar além dos postulados propostos, ter a ventura de organizar um Congresso Mundial. A partir daqui seguimos nossa firme trajetória para alcançar o tão sonhado objetivo final, a criação do evento Congresso Mundial.