Guias de conduta da colaboração ESPGHAN/NASPGHAN para o tratamento da Síndrome do Intestino Irritável e Dor Abdominal Funcional Inespecífica em crianças com idades compreendidas entre 4-18 anos (Parte 1).
Prof. Dr. Ulysses Fagundes Neto
A renomada revista JPGN publicou um artigo de prática clínica, em julho de 2025, intitulado “ESPGHAN/NASPGHAN guidelines for treatment of irritable bowel syndrome and functional abdominal pain‐not otherwise specified in children aged 4–18 years”, de Jip Groen e cols., que abaixo passo a resumir em seus principais aspectos.
INTRODUÇÃO
Dor abdominal relacionada aos Transtornos da Interação Intestino-Cérebro (TIIC) apresenta uma prevalência universal de 13,5% nas crianças com idades compreendidas entre 4-18 anos. Esses transtornos representam um impacto significativo na qualidade de vida dessas crianças, resultando em dor crônica e aumento das comorbidades psicológicas, tais como, ansiedade e depressão. Os Critérios Roma IV propõem uma subcategoria de 4 subtipos dos TIIC, a saber: Síndrome do Intestino Irritável (SII), dor abdominal funcional inespecífica (DAFI), dispepsia funcional (DF) e enxaqueca abdominal (EA). Uma considerável superposição clínica existe entre essas entidades, notavelmente entre SII e DAFI. Essas duas últimas condições podem inclusive compartilhar uma via etiopatogênica comum, representando potencialmente diferentes manifestações de um transtorno similar, onde a apresentação da dor é comparável e a diferenciação baseia-se no padrão da evacuação. Abordagens similares de manejo têm sido adotadas para a SII e os TIIC na prática clínica, e, elas são geralmente estudadas em conjunto nos locais de pesquisa. As abordagens de manejo têm como alvo principal a redução da dor crônica para restaurar a função, e, incluem uma variedade de terapêuticas, a saber: farmacológicas, modificações dietéticas, psicoterapias intestino-cérebro e probióticos, entre outras propostas menos universalmente aceitas.
Avanços recentes na compreensão da etiopatogênese dos TIIC têm levado a um endosso aumentado do modelo biopsicossocial. Esse modelo sugere que as alterações estruturais e funcionais do eixo intestino-cérebro, podem ser induzidas por ambos os fatores: gastrointestinais (ex: infecção intestinal) e eventos de sensibilização (ex: experiência traumática), associados a um antecedente de potencial predisposição genética. Gatilhos para a instalação da enfermidade podem estar presentes muito tempo antes dos sintomas tornarem-se evidentes, o que limita estratégias preventivas ou o reconhecimento da sua causalidade direta. Um grande conjunto de opções terapêuticas tem sido estudado ou empiricamente utilizados na população pediátrica. Esses tratamentos têm como alvo vários aspectos do modelo biopsicossocial.
Ao longo dos anos ESPGHAN/NASPGHAN têm publicado guias de conduta colaborativas, e, a presente publicação trata-se de recomendações baseadas em evidência para o tratamento dos TIIC, com base em uma revisão sistemática e abrangente da literatura médica.
APRESENTAÇÃO DOS RESULTADOS
A apresentação dos dados nesta guia de conduta segue uma estrutura clara e consistente para assegurar máxima transparência. Somente dados de eficácia crucial de desfecho são publicadas nas tabelas de evidências sumárias. Um exemplo de dados de apresentação sumária, juntamente com afirmações explanatórias encontram-se demonstradas nas FIGURAS 1 e 2.
Deve a Terapia de Comportamento Cognitivo ser usada como uma opção de tratamento para os TIIC?
A terapia de comportamento cognitivo (TCC) tem por objetivo atender pacientes que compreendam a conexão entre pensamentos, sentimentos e comportamentos. Os componentes da TCC incluem aprendizado de ambos os aspectos, o cognitivo (ex: identificar e alterar pensamentos indesejáveis relacionados aos sintomas de dor), e as estratégias comportamentais (ex: técnicas de relaxamento, melhoria de hábitos saudáveis). O Grupo de Trabalho (GT) fez uma forte recomendação para a TCC após a avaliação dos benefícios e prejuízos deste tratamento. A despeito do baixo grau de certeza geral para a evidência do desfecho de eficácia, foi sugerido que pode ser positiva, e, a TCC tem sido estudada mais extensivamente do que todas outras opções de tratamento nestas guias de conduta. Esses estudos mostram claramente os efeitos favoráveis em relação aos cuidados tradicionais. O GT admite que a TCC é considerada segura.
Devem os prós e simbióticos ser usados como opção terapêutica para os TIIC?
O GT fez uma recomendação condicional para os prós e simbióticos de multicepas após avaliar os benefícios e prejuízos do tratamento. A despeito da heterogeneidade da ação destes micro-organismos, o GT sugere que poderá haver cepas individuais com efeitos favoráveis nas crianças com TIIC, para a diminuição da intensidade da dor e uma tendência favorável ao sucesso do tratamento. Entretanto, há limitadas evidências oferecendo cepas particulares quando se considera todas as cepas combinadas, o que restringe posteriores recomendações para uma cepa específica. Cepas de probióticos, especialmente aquelas disponíveis sem necessidade de prescrição médica, são geralmente consideradas seguras em crianças sadias e são geralmente tentadas por pacientes em uma base empírica para o tratamento dos TIIC. A síntese dos dados indicou um papel positivo para a opção de tratamento com Lactobacillus rhamnosus que em investigações posteriores, em análises de subgrupos, mostrou diferença para SII e DAF. Entretanto, a recomendação é condicional com moderado grau de certeza, alvejando principalmente pacientes com a SII. Tentativas foram realizadas para explorar quaisquer subgrupos com combinações de cepas, mas não resultaram em recomendações adicionas.
O GT afirma que deve haver particular precaução na escolha do componente probiótico que não tenha necessidade de prescrição médica, levando-se em consideração grandes quantidades de produtos que estão disponíveis no mercado, sem que se conheça as unidades de colônias vivas, e, também, que os pacientes devem ser direcionados para buscar conselhos com um profissional da saúde antes de iniciar qualquer suplemento probiótico.
Deve ser usado o óleo de menta como opção terapêutica para os TIIC?
O Óleo de Menta possui diversas propriedades, incluindo, a saber: antimicrobiana, antioxidante, antinflamatória, antiespasmódica, imunomoduladora e anestésica. Essas propriedades podem contribuir para sua eficácia no tratamento dos pacientes com os TIIC. Entretanto, ainda não está claro quais dessas propriedades são essenciais para a sua funcionalidade nos TIIC. O GT fez uma recomendação condicional para o uso das cápsulas entéricas de menta após avaliar os benefícios e prejuízos do tratamento. O GT avalia que o Óleo de Menta é geralmente considerado seguro e que existe alguma evidência de um efeito favorável.
O Óleo de Menta é geralmente avaliado dentro do escopo dos antiespasmódicos. Entretanto, tendo em vista as consideráveis variedades de potenciais funções atribuídas ao Óleo de Menta, uma decisão de consenso foi estabelecida pelo GT para avaliá-lo separadamente do contexto dessas guias de conduta.
Devem os Antidepressivos Tricíclicos serem usados como uma opção terapêutica para os TIIC?
Antidepressivos podem estimular um aumento do sinal inibidor dos circuitos cerebrais relacionados à dor. Esse efeito é alcançado tendo como alvo os circuitos emocionais e cognitivos, os quais estão altamente conectados com as regiões processadoras da dor no cérebro. Além disso, os antidepressivos podem exercer alguma função ao nível espinhal por interferir na sinalização da transmissão da dor para o corno dorsal do cordão espinhal, a partir de estímulos periféricos.
O GT fez uma recomendação condicional para a Amitriptilina após avaliar os benefícios e os prejuízos do tratamento, reconhecendo que alguns aspectos obscuros ainda existem em relação aos estudos que oferecem essa recomendação.
O GT tem conhecimento de que existem dados de boa qualidade em pacientes adultos, os quais mostram a superioridade da Amitriptilina sobre o placebo para a SII. Entretanto, terapias psicofarmacológicas devem ser utilizadas com cautela em qualquer estágio do desenvolvimento infantil, no qual a neuroplasticidade pode catalisar alterações comportamentais ou contribuir para aspectos negativos na saúde mental dos indivíduos, como resultado desses tratamentos. Além disso, rastreamento com eletrocardiograma deve ser considerado devido a um possível prolongamento do espaço QT. Levando-se essas observações em consideração o GT acredita que os limiares de prescrição da Amitriptilina devem ser cuidadosamente considerados.
Deve a Domperidona ser utilizada como opção de tratamento para os TIIC?
A Domperidona possui propriedades antidopaminérgicas, sendo mais bem reconhecida por seu efeito na aceleração do esvaziamento gástrico, por aumentar as contrações antro-duodenais. O retardo do esvaziamento gástrico é geralmente diagnosticado em pacientes com dispepsia funcional, os quais poderiam então se beneficiar com o uso da Domperidona no contexto dos TIIC. Entretanto, o retardo do esvaziamento gástrico também tem sido encontrado em alguns pacientes portadores da SII e da dor abdominal funcional, sugerindo que a Domperidona poderia ser eficaz em mais um amplo espectro dos TIIC.
O GT fez uma recomendação condicional para o uso da Domperidona após avaliar os benefícios e prejuízos do tratamento. Embora suas propriedades mecanísticas possam fornecer uma melhor aplicação no manejo da dispepsia funcional, a síntese de dados mostra uma limitada evidência de que a eficácia poderia ser também estendida para a SII e DAF. Para se permitir a generalização dos resultados para adolescentes no grupo etário de 14 a 18 anos, para os quais não existem dados disponíveis para o uso da Domperidona para os TIIC, dados obtidos de pacientes adultos podem ser valorizados. Vale ressaltar que a Domperidona pode induzir um prolongamento do espaço QT, por isso o rastreamento com eletrocardiograma deve ser considerado antes da sua indicação, particularmente quando outras drogas que prolongam o espaço QT também possam estar sendo utilizadas concomitantemente.
(A Parte 2 deste Artigo continuará em uma próxima publicação)
PÁGINA 458