Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (SIDA) (AIDS): ainda um sério problema de saúde pública universal

Atenção! As imagens e tabelas que possam ter sido referenciadas no texto estão em processo de atualização! Em breve você acessará uma versão atualizada deste artigo.

Introdução

Dimensões globais da infecção pelo vírus da Imunodeficiência Adquirida Humana (HIV) e a população infantil

Em 2007 o total estimado de pessoas infectadas pelo HIV era de 33 milhões (variação de 30 a 36 milhões) (Figura 1), dos quais 17,7 milhões correspondiam a mulheres e 2,3 milhões (5,8%) a crianças com idade inferior a 15 anos.

Figura 1- Prevalência global da infecção pelo HIV nos diversos países. 

Figura 1- Prevalência global da infecção pelo HIV nos diversos países.

Neste mesmo ano ocorreram 4,3 milhões de novas infecções pelo HIV em todo o mundo, das quais 530.000 (12,3%) foram em crianças (Figura 2).

Figura 2- Taxas de prevalência da AIDS em crianças ao longo dos anos.

Figura 2- Taxas de prevalência da AIDS em crianças ao longo dos anos.

Além disso, houve 2,9 milhões de mortes pela AIDS, sendo que 300.000 (13,1%) ocorreram em crianças (Figura 3).

Figura 3- Taxas de mortalidade na infância por AIDS ao longo dos anos.

Figura 3- Taxas de mortalidade na infância por AIDS ao longo dos anos.

O impacto da infecção pelo HIV no Brasil

Recentemente o Ministério da Saúde informou que o número de casos de AIDS no Brasil voltou a crescer. Em 2009 foram contabilizados 38.538 pacientes com diagnóstico da infecção, o que significou um aumento de 1.073 casos a mais do que o que havia sido registrado em 2008, quando 37.465 pessoas tiveram a doença confirmada. Este indicador é o mais elevado da década e comparado com o ano de 2000, o número de casos novos (incidência) subiu 22%. O avanço da AIDS ocorre mais intensamente entre homens e a população mais jovem. Dados do boletim epidemiológico divulgado este ano demonstram que o número de casos para cada 100 mil habitantes, entre os homens passou de 24,2 para 25 no período 2008-2009. Entre as mulheres a mesma taxa permaneceu inalterada em 15,5. Entre os jovens do sexo masculino na faixa etária de 13 a 19 anos, 26,8% dos casos de AIDS ocorreu entre homossexuais e 10,2% entre bissexuais.

Por outro lado, há uma notícia auspiciosa quanto à transmissão vertical, posto que na última década houve uma redução de 44% nos casos de AIDS da gestante para o recém-nascido. Estes dados para os recém-nascidos, embora representem um grande avanço em relação à década passada, quando se verificou que a transmissão vertical foi responsável pela infecção em 84,5% dos casos em crianças menores de 13 anos, ainda são extremamente preocupantes em número absoluto quanto aos casos novos.

Mecanismos de transmissão do HIV

Passado um pouco mais de um quarto de século das primeiras descrições de casos de AIDS, tem ocorrido o ressurgimento de grande interesse científico pelo papel das mucosas, em especial, as mucosas do trato gastrointestinal na infecção pelo HIV. Com efeito, a maior parte da transmissão do HIV ocorre através das mucosas, seja vaginal ou retal. Isso também acontece durante a transmissão vertical do HIV. Neste último caso, o HIV é inoculado, ainda dentro do útero, no trato gastrointestinal superior do feto durante a sucção do líquido amniótico infectado, ou durante o parto o recém nascido é infectado com sangue e secreções vaginais infectadas, ou mesmo posteriormente, a inoculação do HIV pode ocorrer através do leite materno infectado, durante a amamentação. O trato gastrointestinal por representar o maior órgão linfóide do ser humano tem papel destacado na infecção pelo HIV. Com exceção da transmissão parenteral, o trato gastrointestinal é a principal via de infecção pelo HIV, por transmissão vertical e por contato oral e genital. Os linfócitos da lâmina própria, por expressarem CCR5 e CXCR4, constituem as células alvo iniciais do HIV na mucosa intestinal (Figura 4).

Figura 4- Material de biópsia do intestino grosso obtida na fase aguda da infecção pelo HIV acarretando intensa reação inflamatória linfo-plasmocitária na lâmina própria.

Figura 4- Material de biópsia do intestino grosso obtida na fase aguda da infecção pelo HIV acarretando intensa reação inflamatória linfo-plasmocitária na lâmina própria.

Desde a mucosa, o vírus se dissemina sistemicamente, desencadeando depleção das células CD4+, inicialmente na lâmina própria e em seguida no sangue. À medida que ocorre depleção dos linfócitos CD4+ circulantes e na mucosa, monócitos e macrófagos assumem importância crescente como células alvo e reservatórios do próprio HIV. A infecção pelo HIV, portanto, determina a falência progressiva das funções fisiológicas e imunológicas do trato digestivo (Figura 5).

Figura 5- Material de biópsia do intestino grosso obtida já na fase de depleção imunológica evidenciando ausência praticamente total do infiltrado inflamatório linfo-plasmocitário na lâmina própria.

Figura 5- Material de biópsia do intestino grosso obtida já na fase de depleção imunológica evidenciando ausência praticamente total do infiltrado inflamatório linfo-plasmocitário na lâmina própria.

Os pacientes podem, então, apresentar má absorção dos nutrientes, perda de peso e desenvolver infecções por microorganismos oportunistas e doenças malignas do intestino. Os testes de avaliação da função digestivo-absortiva mostram frequentemente prejuízo na absorção ao longo dos diversos estágios da doença.

A Enteropatia provocada pelo HIV

Diarréia é uma das principais e mais freqüentes manifestações clínicas nas crianças portadoras da infecção pelo HIV. Cerca de 90% dos pacientes em algum momento da evolução da enfermidade desenvolve diarréia, a qual apresenta tendência à cronicidade associada à síndrome de má absorção dos nutrientes. A maioria dos pacientes infectados pelo HIV apresentará em algum momento da evolução da doença envolvimento do trato digestivo. A enteropatia descrita nos pacientes portadores da infecção pelo HIV pode ser devida à própria ação do agente viral ou por microorganismos oportunistas que, em decorrência da deficiência imunológica secundária, tornam-se enteropatogênicos, ou mesmo ainda, pode ocorrer uma associação de ambos os fatores. A enteropatia estabelecida provoca diferentes graus de intensidade de agravo da função digestivo-absortiva causando impacto altamente desfavorável sobre os estado nutricional, a qualidade de vida e a sobrevida dos pacientes. No entanto, nem sempre se observa uma correlação diretamente proporcional entre a ocorrência de diarréia, grau de atrofia das vilosidades intestinais e dos testes de absorção, de forma que o mecanismo responsável pela enteropatia do HIV ainda permanece por ter um esclarecimento definitivo.

Nos pacientes com contagem de CD4+ menor do que 50/mmm3 a probabilidade destes virem a apresentar diarréia crônica com 1, 2 e 3 anos de seguimento é de 48,5%, 74,3% e 95,6%, respectivamente. Trata-se de uma síndrome de gênese multifatorial (Quadro 1) envolvendo a interação entre infecções por microorganismos oportunistas, má absorção dos nutrientes, alterações metabólicas e, possivelmente, lesão tecidual determinada pelo próprio HIV (Figuras 6 & 7).

Figura 6- Material de biópsia do intestino delgado evidenciando atrofia vilositária sub-total e hiperplasia das glândulas crípticas.

Figura 6- Material de biópsia do intestino delgado evidenciando atrofia vilositária sub-total e hiperplasia das glândulas crípticas.

Figura 7- Material de biópsia do intestino grosso evidenciando importante depleção do infiltrado linfo-plasmocitário na lâmina própria.

Figura 7- Material de biópsia do intestino grosso evidenciando importante depleção do infiltrado linfo-plasmocitário na lâmina própria.

Quadro 1- Esquema multifatorial da enteropatia da AIDS.

Quadro 1- Esquema multifatorial da enteropatia da AIDS.

As principais alterações morfológicas descritas no intestino delgado dos pacientes infectados pelo HIV são atrofia das vilosidades de grau variável, hiperplasia das criptas e aumento dos linfócitos intra-epiteliais, associadas ou não à presença de sintomas, que podem ser observadas em quaisquer dos estágios da doença (Figura 8).

Figura 8- Material de biópsia do intestino delgado evidenciando atrofia vilositária de grau moderada/intensa com hiperplasia das criptas e aumento do infiltrado linfo-plasmocitário na lâmina própria.

Figura 8- Material de biópsia do intestino delgado evidenciando atrofia vilositária de grau moderada/intensa com hiperplasia das criptas e aumento do infiltrado linfo-plasmocitário na lâmina própria.

No intestino grosso tem sido descrito graus de inflamação comparáveis aos daqueles evidenciados em pacientes portadores da doença inflamatória intestinal (Figura 9).

Figura 9- Material de biópsia de intestino grosso mostrando uma lesão de colite focal ativa (seta).

Figura 9- Material de biópsia de intestino grosso mostrando uma lesão de colite focal ativa (seta).

 

Na investigação microbiológica do trato gastrointestinal podem ser observados diversos microorganismos, oportunistas ou não, cujo achado nem sempre está associado às manifestações clínicas (Figuras 10 -11 – 12 & 13).

Figura 10- Material de biópsia do intestino grosso evidenciando a presença (seta) de uma partícula do vírus de Inclusão Citomegálica na lâmina própria.

Figura 10- Material de biópsia do intestino grosso evidenciando a presença (seta) de uma partícula do vírus de Inclusão Citomegálica na lâmina própria.

Figura 11- Material de biópsia do intestino delgado evidenciando (seta) a presença de um merozoita maduro de Isospora belli acima da membrana basal do enterócito.

Figura 11- Material de biópsia do intestino delgado evidenciando (seta) a presença de um merozoita maduro de Isospora belli acima da membrana basal do enterócito.

Figura 12- Ultramicrofotografia de células do intestino delgado evidenciando a presença de um merozoita de Enterocytozoon bieneusi comprimindo o núcleo de um enterócito.

Figura 12- Ultramicrofotografia de células do intestino delgado evidenciando a presença de um merozoita de Enterocytozoon bieneusi comprimindo o núcleo de um enterócito.

Figura 13- Infecção por Cryptosporidium (setas identificando os inúmeros microorganismos) infiltrado na luz da glândula críptica do intestino grosso.

Figura 13- Infecção por Cryptosporidium (setas identificando os inúmeros microorganismos) infiltrado na luz da glândula críptica do intestino grosso.

Vale ressaltar que a infecção pelo HIV pode afetar todo o trato gastrointestinal, bem como o sistema hepatobiliar (Figura 14).

Figura 14- Infecção da vesícula biliar por Cryptosporidium. Notar a presença de inúmeros microorganismos na luz da vesícula biliar.

Figura 14- Infecção da vesícula biliar por Cryptosporidium. Notar a presença de inúmeros microorganismos na luz da vesícula biliar.

Conforme anteriormente mencionado transcrevo abaixo os pontos mais importantes do artigo publicado na revista Arquivos de Gastroenterologia 43; 310-15, 2006, o qual descreve nossa experiência ao investigar a função digestivo-absortiva de crianças portadoras de AIDS. Vale ressaltar que este artigo é um subproduto da tese de Mestrado da Dra. Christiane A. C. Leite, de quem fui Orientador, apresentada ao Programa de Pós-Graduação do Departamento de Pediatria da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo, e que foi oficialmente aprovada.

 

ASPECTOS FUNCIONAIS, MICROBIOLÓGICOS E MORFOLÓGICOS INTESTINAIS EM CRIANÇAS INFECTADAS PELO VÍRUS DA MUNODEFICIÊNCIA HUMANA

Christiane Araujo Chaves LEITE1, Regina Célia de Menezes SUCCI2, Francy Reis da Silva PATRÍCIO3 e Ulysses FAGUNDES-NETO4

Trabalho realizado na Disciplina de Gastroenterologia do Departamento de Pediatria da Universidade Federal de São Paulo – Escola Paulista de Medicina, São Paulo, SP.

1 Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, CE; 2 Disciplina de Infectologia Pediátrica, 3 Departamento de Patologia, 4 Disciplina de Gastroenterologia Pediátrica da Universidade Federal de São Paulo – Escola Paulista de Medicina, São Paulo, SP.

Tendo em vista a importância do impacto das manifestações gastrointestinais da infecção pelo HIV em crianças e a escassez de informações a esse respeito em nosso meio, o presente estudo teve por objetivo avaliar a função absortiva, as características morfológicas e microbiológicas intestinais, nesse grupo de pacientes.

CASUÍSTICA E MÉTODOS

Casuística

Foram selecionadas aleatoriamente, de forma prospectiva e consecutiva, entre agosto de 1994 e maio de 1995, 11 crianças infectadas pelo HIV, menores de 13 anos, pertencentes às categorias clínicas A, B ou C da classificação proposta pelos Centers for Diseases Control and Prevention (CDC) no Ambulatório de AIDS da Disciplina de Infectologia do Departamento de Pediatria da Universidade Federal de São Paulo – Escola Paulista de Medicina (UNIFESP – EPM) e na Enfermaria e Ambulatório do Núcleo de Nutrição, Alimentação e Desenvolvimento Infantil (NUNADI) do Centro de Referência da Saúde da Mulher da Secretaria da Saúde de São Paulo, em São Paulo, SP. Foram constituídos dois grupos, a saber: grupo I – cinco crianças com história de pelo menos um episódio diarréico nos 30 dias que antecederam sua inclusão no estudo; grupo II – seis crianças, sem relato de ocorrência de diarréia no mesmo período. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UNIFESP-EPM, sendo obtido consentimento escrito e esclarecido dos pais ou responsáveis legais pelas crianças. Os hemofílicos soropositivos para o HIV só foram incluídos no estudo quando havia indicação clínica absoluta para realização de endoscopia digestiva alta.

Na admissão ao estudo foi preenchido um questionário padronizado com informações clínicas e epidemiológicas, seguido pela aferição do peso e estatura para classificação do estado nutricional segundo os critérios de Gomez modificados por Bengoa e Waterlow modificados por Batista et al., tendo como referência de normalidade as tabelas de percentis do National Center for Health Statistics (NCHS).

INVESTIGAÇÃO LABORATORIAL

Teste de absorção da D-xilose
Após jejum de 4 horas os pacientes receberam 0,5 g de D-xilose (diluída em solução aquosa a 10%) por kg de peso, até um máximo de 25 g. Uma hora após sua administração, foi coletada amostra de sangue para determinação da D-xilose sérica pelo método colorimétrico, de acordo com técnica descrita por Roe e Rice (26). Valores menores que 25 mg/dL foram considerados como indicativos de má absorção.

Cultura e parasitológico de fezes
As amostras de fezes foram cultivadas nos meios SS, BEM e tetrationato para identificação de Escherichia coliSalmonella e Shigella e nos meios Lowenstein Jensen e Stonebrink para identificação de micobactérias. A pesquisa de micobactérias também foi realizada por baciloscopia, usando-se a coloração de Ziehl-Nielsen. Rotavírus foi pesquisado pelos métodos imunoenzimático e de aglutinação no látex. A pesquisa de parasitas e helmintos foi realizada pelos métodos de Hoffman, centrífugo de sedimentação em formol-éter e de Rugai.Cryptosporidium foi investigado pelo método de Ziehl-Nielsen.

Biópsia de intestino delgado
A biópsia de intestino delgado foi realizada com utilização de uma sonda flexível de polietileno acoplada a uma cápsula de Watson na extremidade distal ou através de pinça endoscópica, nos casos em que o procedimento por cápsula não foi possível ser realizado ou com indicação clínica prévia de realização de endoscopia digestiva alta. Os fragmentos obtidos foram submetidos as colorações de hematoxilina-eosina, Giemsa, PAS, Prata e Ziehl-Nielsen e, nas amostras de tamanho satisfatório, foi realizada a pesquisa de micobactérias em tecido. A interpretação dos fragmentos por microscopia óptica foi baseada na relação entre a altura das vilosidades e a profundidade das criptas e na intensidade do infiltrado inflamatório da lâmina própria, segundo critérios modificados de Shenck e Klipstein. Os parâmetros histológicos avaliados foram os seguintes:

a) altura ou comprimento da vilosidade da abertura da cripta até o topo da vilosidade;

b) comprimento ou profundidade da cripta da abertura até o fundo da cripta que repousa sobre a muscular da mucosa. A relação entre a altura da vilosidade e a profundidade da cripta foi avaliada subjetivamente do seguinte modo: grau I – relação entre 3 a 2 para 1: sem atrofia ou em grau muito leve, praticamente dentro da normalidade; grau II – relação 1 para 1: atrofia leve; grau III – já existe inversão da relação vilosidade/cripta, isto é, cripta pouco mais longa que a vilosidade: atrofia moderada, também chamada atrofia parcial; grau IV – mucosa plana por intensa atrofia das vilosidades, também chamada atrofia subtotal;

c) infiltrado celular da lâmina própria, constituído por linfócitos, plasmócitos e eosinófilos, avaliado em graus leve ou normal, moderado e intenso. Polimorfonucleares neutrófilos, que não existem na mucosa intestinal normal, quando ocorreram, foram também classificados em graus leve, moderado e intenso;

d) linfócitos intra-epiteliais, que ocorrem normalmente no intestino delgado em número de até 30 por 100 enterócitos, foram avaliados em graus de aumento leve (30 a 40 por 100 enterócitos), moderado (entre 40 e 50 por 100 enterócitos) e intenso (acima de 60 por 100 enterócitos).

Biópsia retal
A biópsia retal foi realizada com a utilização da cápsula de Rubin. Os fragmentos obtidos foram submetidos as colorações de hematoxilina-eosina, Giemsa, PAS, Prata e Ziehl-Nielsen e, nas amostras de tamanho satisfatório, foi realizada a pesquisa de micobactérias no tecido. A avaliação morfológica dos fragmentos de intestino grosso foi realizada por microscopia óptica, de acordo com os critérios de Morson, considerando-se a análise da integridade do epitélio superficial (erosões), das glândulas e o infiltrado de linfócitos, plasmócitos e eosinófilos nos graus de intensidade leve, moderado e intenso.

RESULTADOS

A idade das crianças variou de 5 a 149 meses (mediana de 24 meses), sendo seis do sexo feminino e cinco do sexo masculino. Nos 30 dias que antecederam a inclusão no estudo, cinco crianças haviam apresentado diarréia, das quais três já assim se mostravam desde o início da investigação. Outros sintomas digestivos referidos foram vômitos (4/11), disfagia (1/11) e dor abdominal (1/11). Os medicamentos usados foram: zidovudina (9/11), didanosina (3/11), sulfametoxazol-trimetoprim (10/11), imunoglobulina intravenosa (2/11), nistatina (2/11), azitromicina (1/11) e associação de rifampicina, isoniazida e pirazinamida (1/11). Das 11 crianças, 9 foram infectadas pelo HIV por transmissão vertical, 1 por transfusão de hemoderivados (hemofílico) e 1 permanecia com modo de transmissão não esclarecido.

Todas as 11 crianças apresentavam algum grau de desnutrição energético-protéica, sendo 6 de III grau, 2 de II grau e 1 de I grau. Pelos critérios de Waterlow modificados por Batista et al. aplicado para as duas crianças maiores de 5 anos, houve um caso de desnutrição pregressa e um de desnutrição crônica.

A coprocultura, realizada em 7 dos 11 pacientes, não identificou bactérias enteropatogênicas. Pesquisa de Rotavírus foi negativa nas seis crianças em que foi realizada, e o exame protoparasitológico também foi negativo nas oito crianças das quais foram obtidas amostras adequadas de fezes. Cryptosporidium foi identificado em 1 e o resultado foi duvidoso em outro dos 10 exames realizados. Dos cinco casos em que foi possível pesquisar, Mycobacterium avium intracellulare foi identificado em apenas uma amostra de fezes. A pesquisa de Mycobacterium avium intracellulare nos fragmentos de biópsia resultou negativa nas seis amostras investigadas, inclusive na do paciente em que este microorganismo foi identificado nas fezes.

A prova de absorção da D-xilose foi realizada em 9 dos 11 pacientes, com valores variando de 8,9 a 24,4 mg/dL, média de 15,6 mg/dL, mediana de 14,2 mg/dL e desvio padrão de 5 mg/dL.

Dos 11 fragmentos de biópsias de intestino delgado obtidos, 1 foi excluído da análise por ser tecnicamente inadequado para exame (Tabela 1).

Quanto à relação entre altura das vilosidades e profundidade das criptas, os resultados foram os seguintes: três com atrofia de vilosidades grau I (Figura 1), dois com grau I/II, um com grau II, um com grau II/III e um com grau III/IV. Em dois casos não foi possível a análise deste parâmetro, pois as amostras eram superficiais. Linfócitos intra-epiteliais foram observados nos 10 fragmentos analisados (Figura 1), estando aumentados em 5, sendo 2 em quantidade leve, 2 em quantidade moderada e 1 em quantidade intensa.

f1a

O infiltrado linfoplasmocitário da lâmina própria estava aumentado em 100% das amostras analisadas (10/10) e foi graduado em moderado (4/10), intenso (5/10), como se pode observar na Figura 2-A, e leve (1/10).

f2a

O infiltrado de polimorfonucleares neutrófilos da lâmina própria estava aumentado em 7 das 10 amostras analisadas. Destas, três em grau leve, quatro em grau moderado e um em grau intenso. Em apenas um caso foi observada presença de microorganismos em forma de bastões, similares a bactérias, em meio ao muco que recobria o epitélio. Nesta amostra, uma crosta fibrino-leucocitária no topo da vilosidade fez supor lesão ulcerada.

Foram realizadas oito biópsias retais e, destas, seis se prestaram à análise histopatológica. Quanto à integridade epitelial, em 100% (6/6) dos casos mostrava-se íntegra. O infiltrado linfoplasmocitário estava aumentado em todos os casos, variando de grau leve (3/6), como se observa na Figura 2-B, moderado (2/6) e intenso (1/6).

t2

A presença de infiltrado de polimorfonucleares neutrófilos foi observada em quatro casos, sendo de grau leve em três e intenso em um (Tabela 2 e Figura 3).
f3a

 

Abaixo transcrevo os principais tópicos da discussão do artigo publicado na revista Arquivos de Gastroenterologia 43; 310-15, 2006, intitulado:

ASPECTOS FUNCIONAIS, MICROBIOLÓGICOS E MORFOLÓGICOS INTESTINAIS EM CRIANÇAS INFECTADAS PELO VÍRUS DA MUNODEFICIÊNCIA HUMANA

Christiane Araujo Chaves LEITE, Regina Célia de Menezes SUCCI, Francy Reis da Silva PATRÍCIO e Ulysses FAGUNDES-NETO

DISCUSSÃO

Este estudo foi realizado em período que antecedeu o advento da terapia anti-retroviral potente (HAART), no qual se dispunha apenas de monoterapia ou uso combinado de dois anti-retrovirais análogos de nucleosídios e, portanto, pequeno impacto clínico, imunológico e virológico na evolução da infecção pelo HIV. Sendo assim, a presente amostra deve representar condição muito próxima à observada na história natural da infecção pelo HIV nas crianças. Esta observação é importante, pois, ao se compararem biópsias de intestino de pacientes HIV positivos entre 1995 e 1998, período em que foi introduzida a HAART, Monkemuller et al. constataram declínio significativo das infecções oportunistas gastrointestinais, mesmo nos indivíduos com CD4 baixo. De modo diverso, estudo conduzido na região sul do Brasil em 1999, envolvendo 104 crianças infectadas pelo HIV e já em uso de HAART, identificou a presença de Cryptosporidium em 31,73% das amostras de fezes analisadas (Figura 1).

Figura 1- Material de biópsia de intestino delgado evidenciando atrofia vilositária sub-total e a presença de microorganismos de Cryptosporidium firmemente aderidos à superfície epitelial dos enterócitos.

Figura 1- Material de biópsia de intestino delgado evidenciando atrofia vilositária sub-total e a presença de microorganismos de Cryptosporidium firmemente aderidos à superfície epitelial dos enterócitos.

Este mesmo estudo, no entanto, atribui ao uso da HAART a escassez de alteração no teste da D-xilose, observada em apenas 7,7% das crianças. Outro estudo envolvendo coorte de 671 pacientes infectados pelo HIV, entre 1995 e 1999, mostrou que 47,7% apresentavam má absorção de D-xilose, 38,9% tinham diarréia e que em 12,2% foram identificados agentes patogênicos entéricos, sendo encontrado Cryptosporidium em apenas uma amostra de fezes. A identificação de microorganismos patogênicos nas fezes não tinha associação com a ocorrência de diarréia. Esse estudo concluiu que a alteração da função gastrointestinal é também problema comum após o advento da HAART, tendo início precoce na evolução da infecção pelo HIV, mesmo na ausência de diarréia. A explicação para resultados tão distintos enfatiza a complexidade da interação de fatores sociodemográficos, exposição a agentes patogênicos diversos e estágio da infecção pelo HIV capazes de afetar a função gastrointestinal. Embora com casuística pequena e num contexto de disponibilidade de arsenal terapêutico diferente, os resultados da presente série se assemelham aos reportados na literatura. Três dos 11 pacientes apresentavam diarréia. No entanto, os dois microorganismos oportunistas identificados,Cryptosporidium e Mycobacterium avium intracellulare, não estavam associados à ocorrência de diarréia. Ainda nesta casuística, o teste da D-xilose esteve abaixo do nível normal nos nove pacientes em que foi realizado, independentemente da ocorrência de diarréia como sintoma de má absorção, fato também relatado por outros autores (Figura 2).

Figura 2- Esporos de Mycobacterium avium intracellulare disseminados na luz do intestino delgado.

Figura 2- Esporos de Mycobacterium avium intracellulare disseminados na luz do intestino delgado.

O paciente em que se identificou Mycobacterium avium intracellulare teve a D-xilose de valor mais baixo, ainda que com apenas grau II de atrofia de vilosidades no fragmento de intestino delgado obtido por biópsia. O encontro de má absorção da D-xilose, mesmo com alterações histológicas mínimas da mucosa intestinal, também já foi escrito, podendo os resultados alterados representar uma predição da ocorrência da enteropatia pelo HIV (Figura 3).

Figura 3- Material de biópsia de intestino delgado infectado pelo Mycobacterium avium intracellulare.

Figura 3- Material de biópsia de intestino delgado infectado pelo Mycobacterium avium intracellulare.

Knox et al. verificaram em sua casuística que a má absorção da D-xilose ocorreu em indivíduos sem outros sinais de má absorção, tais como diarréia, baixos níveis de vitamina B12 e de folatos no sangue ou perda de gordura nas fezes. Tais dados seriam sugestivos de que as alterações precoces determinadas pela enteropatia pelo HIV sejam freqüentes, porém não detectáveis, exceto por absorção alterada da D-xilose.

Desnutrição, na presente casuística, esteve presente em todas as crianças, na maioria em sua forma grave (III grau), quando consideradas as menores de 5 anos, denotando o impacto da infecção pelo HIV nesses pacientes. A avaliação das duas crianças maiores de 5 anos evidencia agravo nutricional de longa duração, tendo em vista o comprometimento da estatura de ambos. Não se pode desprezar o efeito que o meio ambiente adverso, ao qual essas crianças são submetidas, exerce nesse contexto, pois algumas delas identificavam-se perfeitamente na descrição da síndrome que Fagundes-Neto et al. denominaram de enteropatia ambiental, em que são observados graus variáveis de atrofia das vilosidades e infiltrado linfoplasmocitário do córion, à semelhança dos resultados do estudo presente. A desaceleração do crescimento ponderal e de estatura parece ser a alteração mais comum nas crianças infectadas pelo HIV e é acompanhada por decréscimo preferencial da gordura livre ou da massa corporal magra. Podem estar associadas deficiências de vários micronutrientes, alterações neuroendócrinas, infecções do trato gastrointestinal e má absorção de carboidratos, gordura e proteína na gênese desse processo. As crianças infectadas pelo HIV que têm crescimento retardado, apresentam cargas virais mais elevadas quando comparadas com as que têm crescimento normal e a supressão do HIV parece exercer papel favorável na retomada do ganho ponderal e da estatura.

A análise histológica dos fragmentos de intestino delgado no presente estudo mostrou graus variados de atrofia das vilosidades, alteração da relação altura da vilosidade versus profundidade da cripta nos oito casos em que a biópsia permitiu essa avaliação, infiltrado inflamatório crônico com predomínio de células linfomononucleares na maioria das amostras e aumento de linfócitos intra-epiteliais na metade dos casos analisados. Essas alterações não estavam correlacionadas com ocorrência de diarréia, nem com a presença de microorganismos ou alteração do teste da D-xilose, conforme descrito anteriormente. Inclusive, o paciente com grau mais intenso de atrofia vilositária (grau III/IV) desta casuística, não apresentava diarréia (Figuras 4 & 5).

Figura 4- Material de biópsia do intestino delgado de um paciente portados de AIDS evidenciando uma camada muco-fibrino-leuccocitária recobrindo a superfície epitelial (seta) e também uma solução de continuidade (úlceração) do epitélio do intestino delgado no topo das vilosidades.

Figura 4- Material de biópsia do intestino delgado de um paciente portados de AIDS evidenciando uma camada muco-fibrino-leuccocitária recobrindo a superfície epitelial (seta) e também uma solução de continuidade (úlceração) do epitélio do intestino delgado no topo das vilosidades.

Figura 5- Material de biópsia de um paciente portador de AIDS evidenciando atrofia vilositária sub-total com hiplerplasia das glândulas crípticas e intenso infiltrado inflamatório linfo-plasmocitário na lâmina própria.

Figura 5- Material de biópsia de um paciente portador de AIDS evidenciando atrofia vilositária sub-total com hiplerplasia das glândulas crípticas e intenso infiltrado inflamatório linfo-plasmocitário na lâmina própria.

Este polimorfismo das alterações estruturais do intestino e a nem sempre possível associação com ocorrência de sintomas clínicos, encontro de microorganismos e provas de absorção alteradas levou a hipótese da enteropatia pelo HIV, pioneiramente sugerida por Kotler et al. e Ullrich et al. em alguns aspectos, com os descritos por Batman et al. em estudo comparativo da morfometria da mucosa jejunal de pacientes infectados pelo HIV residentes em Uganda e Londres. Segundo Marsh este tipo de atrofia com hiperplasia de criptas e atrofia de vilosidades, que pode chegar à mucosa plana, observada também na doença celíaca e em outras enteropatias, seria causado por mecanismos regulados por linfócitos T. Oktedalen et al., estudando 20 pacientes infectados pelo HIV com diarréia, constataram um padrão de má absorção da D-xilose comparável ao observado em pacientes com doença celíaca. No entanto, esse acentuado comprometimento na absorção intestinal não pôde ser explicado pelas alterações observadas pela microscopia de luz dos fragmentos de intestino delgado, isto é, pouca inflamação da mucosa e vilosidades normais.

Nas seis crianças deste estudo, nas quais foi possível fazer a análise morfológica das biópsias retais, destaca-se o encontro de infiltrado linfomononuclear aumentado em todas as amostras e de infiltrado polimorfonuclear neutrófilo em quatro das amostras, caracterizando quadro de infiltrado inflamatório não específico, também descrito na literatura. A presença dos neutrófilos indica atividade da lesão, isto é, fase de reagudização da lesão, já que essas células não ocorrem normalmente na lâmina própria do trato gastrointestinal. Clayton et al. documentaram progressão qualitativa e quantitativa nas alterações vistas na mucosa retal de indivíduos infectados pelo HIV, a qual se correlacionou com a presença e a quantidade do vírus no tecido colônico, sugerindo, além da enteropatia do HIV anteriormente comentada, que a mucosa intestinal poderia constituir local de proliferação e de destruição de linfócitos. Mais recentemente, Monno et al., comparando amostras deHIV obtidas concomitantemente do sangue e de tecido retal, verificaram padrões de resistência aos anti-retrovirais diferentes, dando suporte à idéia de evolução genotípica variável do HIV nos diferentes compartimentos corporais e enfatizando a participação da mucosa intestinal na seleção do genótipo do HIV.

Considerando-se a escassez de informações sobre o trato gastrointestinal em crianças infectadas pelo HIV, os resultados da presente pesquisa contribuem para melhor compreensão da evolução da infecção pelo HIV na faixa etária pediátrica. Um passo futuro, seria avançar na análise ultra-estrutural para melhor caracterizar a enteropatia do HIV, bem como avaliar o impacto da má absorção intestinal na biodisponibilidade dos medicamentos anti-retrovirais e a busca de estratégias de suporte nutricional específicas para esses pacientes.